O portal Estratégia Militares, ao longo dos últimos meses, está trazendo um conteúdo completo sobre o período histórico da Idade Média para todos os nossos leitores e alunos. Essas postagens se baseiam no conteúdo das aulas da professora Alê Lopes em nossa plataforma on-line.
Depois de tratarmos da influência da Igreja Católica na Idade Média, do apogeu do feudalismo e das Cruzadas católicas, entraremos em um novo tema de grande importância: o renascimento comercial e urbano. Confira a seguir!
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Renascimento Comercial e Urbano
As transformações provocadas pelas Cruzadas, pela influência da Igreja Católica e pelas transformações do feudalismo são parte da experiência que a historiografia costuma chamar de renascimento comercial e de renascimento urbano.
Esses termos se referem ao processo de dinamização da vida nas cidades e das atividades comerciais em um contexto em que a expansão agrícola atingiu seu máximo potencial. Perry Anderson fala de circunstâncias marcadas por uma “impressionante produção agrícola e vitalidade urbana”.
Claro que esses processos não se deram de um dia para o outro. As transformações no feudalismo são resultado dos acontecimentos entre os séculos XI e XIII. Assim, a retomada da vida urbana e mercantil é a resultante desse processo e, por isso, devem ser compreendidas de maneira complementar.
No entanto, esse resultado é, ao mesmo tempo, a causa do aprofundamento das transformações do feudalismo. É como se fosse uma lógica retroalimentar. Sendo assim, cabe trazer aqui mais uma colocação feita pelo professor Anderson:
“A ascensão desses enclaves urbanos não pode ser separada da influência agrária que os cercava. É bastante incorreto divorciar os dois em qualquer análise da Idade Média […].” (ANDERSON, Perry. Passagens da Antiguidade ao Feudalismo. Tradução de Beatriz Sidou. São Paulo: Brasiliense, 2000, p. 185.)
Com o excedente de produção, o comércio ganhou um impulso decisivo. Inicialmente, ele era local e se desenvolveu ao redor dos feudos ou em terras feudais não protegidas por muralhas.
O comércio local acontecia em torno de bens como madeira – fruto do desmatamento dos bosques -, cereais, animais, lãs, artefatos para carregamento de produtos, entre outros. Os negócios eram realizados, majoritariamente, por servos ou artesãos.
No entanto, esse crescimento mercantil não ficou restrito ao espaço local. Devido às Cruzadas Cristãs, desenvolveram-se rotas comerciais que ligavam praticamente toda a Europa e até algumas áreas do Oriente.
Nesses casos, as rotas foram desenvolvidas, em sua maioria, pelos nobres e filhos de nobres – os cavaleiros andantes europeus. De qualquer forma, eram empreendimentos de iniciativa privada. Sendo assim, não se tratou de um projeto político expansionista de nenhum Estado centralizado.
Com certeza, a mais importante foi a Rota do Mediterrâneo, também conhecida como Rota Comercial do Sul. Ela era marítima e foi controlada por mercadores da Península Italiana, das regiões de Gênova e Veneza.
Os portos mais importantes da Rota do Mediterrâneo ficavam nessas cidades italianas e em Túnis, Trípoli e Constantinopla. Foi uma importante ponte para os produtos luxuosos do Oriente, como seda, frutas secas, especiarias, perfumes, entre outros produtos.
Outro importante lugar do renascimento comercial foi o Norte da Europa, na região onde hoje é a Bélgica, Holanda e os Países Baixos. Ali se estabeleceu a chamada Rota Comercial do Norte.
Ela se desenvolveu por meio da ligação de várias associações de mercadores dessa região. Essas associações eram conhecidas como hansas. Por isso, a Rota do Norte é conhecida como Liga Hanseática.
Liga Hanseática
A Liga Hanseática foi fundada no século XIII por mercadores germânicos das regiões de Hamburgo, Lubeck, Bremen, Dantzig, Bruges e Rostock. Durante a Baixa Idade Média, se constituiu como uma potência comercial europeia – mas, ela era mais que isso.
No século XV, a Liga era uma confederação político-econômica que reunia quase 60 cidades, possuía uma das maiores frotas marítimas, exército e governo centralizado. A Liga agrupou os príncipes burgueses. Eles formaram as monarquias europeias mais dinâmicas e, com isso, impulsionaram o comércio marítimo e as reformas políticas e religiosas da Época Moderna.
Polos Comerciais
É possível perceber que existiam dois polos comerciais na Europa:
Essas duas rotas eram marítimas e contavam com vários portos que eram a porta de entrada para o continente.
A ligação entre as regiões desses dois polos se dava por uma série de rotas terrestres. Nos principais pontos de cruzamento dessas vias, os mercadores e artesãos se encontravam para articular seus negócios, realizar trocas e oferecer seus produtos. Assim, surgiram as Feiras.
O desenvolvimento das atividades mercantis tornou as relações de troca mais complexas. Isso significa que foi necessário a utilização de moeda em larga escala para mediar as trocas. Nesse processo, apareceu uma importante instituição: as Casas Bancárias.
Inicialmente, elas tinham a função de uma casa de câmbio, como aqueles locais onde as pessoas trocam o seu dinheiro quando chegam em outro país. Posteriormente, com o aumento do volume de negócios, as casas bancárias também viraram casas de depósito: um lugar onde as pessoas poderiam guardar seu dinheiro.
Não demorou muito para que as casas bancárias também começassem a emprestar dinheiro à juros. Assim, cambistas viraram banqueiros. Essa atividade foi desenvolvida especialmente por judeus, devido ao fato de não serem cristãos e não terem problema com a questão da usura, uma prática condenada pela Igreja Católica.
Igreja Católica X lucro financeiro
Porém, por que a Igreja Católica condenava o ato de as pessoas emprestarem dinheiro à juros?
Isso acontecia por causa do conjunto de valores e dogmas da Igreja Católica que deveriam reger o comportamento e as atitudes dos cristãos. Nesse sentido, o lucro era indecente, porque a pessoa que o emprestava ganhava mais dinheiro somente por ter esperado o tempo passar.
Para os dogmas cristãos isso tinha dois problemas:
- Nenhum tipo de trabalho era realizado; e
- O tempo era um elemento divino, que deveria ser manipulado e usado apenas por Deus – o tempo era o da vida e o da morte.
Esses preceitos morais geraram obstáculos para os cristãos se envolverem em atividades bancárias. Por isso, pessoas de outras religiões foram aqueles que aproveitaram a janela de oportunidade, principalmente os judeus.
Ainda sobre a atividade financeira, segundo o historiador Jacques Le Goff26, o comércio de dinheiro tornou-se uma atividade fundamental para o impulsionamento das atividades econômicas ligadas ao comércio em si, já que permitiu crescimento escalar das transações mercantis. Perry Anderson vai além e afirma que:
“O apogeu das fortunas estava na atividade banqueira, onde as taxas de juros astronômicas podiam ser ganhas de empréstimos extorsivos à príncipes e nobres com pouco dinheiro vivo. […] A volta da cunhagem de moeda à Europa na metade do século XIII, com a fabricação simultânea em 1252 […] (ANDERSON, Perry. Passagens da Antiguidade ao Feudalismo. Tradução de Beatriz Sidou. São Paulo: Brasiliense, 2000.)
Grupos econômicos e cidades
Dessa forma, a terra deixou de ser a única fonte de riqueza. E, se existem formas diferentes de ganhar dinheiro, também podemos pensar que grupos econômicos diferentes se formam nesse processo. Até aqui falamos de pelo menos três deles:
Essa dinamização das atividades econômicas está inscrita no espaço físico da Europa Ocidental. Logo, ela foi capaz de promover uma mudança na ocupação territorial e na organização social.
Então, nas proximidades das rotas comerciais, dos portos e das feiras surgiram novos núcleos urbanos: as cidades. Veja o que diz o professor Le Goff27:
“No mundo romano as cidades eram centros políticos, administrativos, militares e, secundariamente, econômicos […] a idade medieval nasce e se desenvolve a partir de sua função econômica. É criada pela renovação das trocas e é assunto de mercadores. O que, bastantes vezes, revela a falsa continuidade da realidade urbana entre o primeiro milênio e a Idade Média é que a cidade medieval se instala ao lado do núcleo antigo. […] Veneza, Florenza, Génova, Pisa, Milão, Paris, Londres, Hamburgo e Lubeck são criações medievais típicas […] Este papel de guia, de fermento e de motor, doravante, assumido pela cidade, afirma-se primeiramente na ordem econômica. Mas, mesmo se a cidade, a princípio, foi um local de trocas, um nó comercial, um mercado, a sua função essencial este domínio é a produção.”
Da leitura atenta do trecho acima, podemos verificar alguns elementos importantes sobre as cidades medievais:
- Não eram uma simples continuidade das antigas cidades da antiguidade;
- São formações tipicamente do período medieval, por isso, chamadas de cidades medievais;
- Tem uma função essencialmente econômica, o que as torna diferentes das cidades da antiguidade, ligadas à função política, administrativa e militar; e
- Nessa função econômica, tem relevância a produção. Nisso entra o papel dos artesãos e da manufatura, sendo que a mais importante foi a manufatura têxtil.
Em um primeiro momento esses espaços urbanos eram fortificados e construídos ao lado dos antigos centros urbanos. Mas, as atividades ali dentro eram diferentes, pois predominava o comércio.
Esses espaços eram chamados burgos, palavra derivada da fusão do germânico e do latim burgs + burgu e que significa “pequena fortaleza”. Seus frequentadores eram os burgueses.
Os burgos e os burgueses
No entanto, por que citamos “frequentadores” e não “moradores”? Essas pessoas do burgo não moravam lá?
Inicialmente, elas não moravam. O burgo era um lugar que servia para fazer o comércio local, onde ficavam alguns lugares para armazenagem e outros mercados. Mas, com o tempo e a ampliação das atividades, as pessoas passaram a construir casas para morar mais perto dos burgos e economizar tempo e transporte.
Jacques Le Goff afirma que o êxodo rural, ou seja, a migração do campo para a cidade, foi um grande fenômeno durante a Idade Média Central. Assim, os vários elementos humanos que chegaram nesses espaços ao longo do tempo constituíram uma “sociedade nova”.
Pela própria configuração espacial da Europa feudalizada, é possível imaginar que os burgos, de alguma maneira, estavam localizados em terras feudais. Assim, essas transformações econômicas, sociais e comportamentais se chocavam com o status quo dos nobres senhores feudais.
Nesse processo, surgiu um novo conjunto de taxas imposto pelo senhor feudal e que deveria ser pago pelos burgueses. Em contrapartida, eles exigiam liberdade de comércio e de circulação.
Desses choques, derivou o movimento comunal organizado por burgueses para conquistar a autonomia e a independência das cidades e, assim, livrar-se do domínio e da autoridade do senhor feudal.
Essa demanda poderia ser alcançada pacificamente por meio de uma carta de emancipação, conhecida como Carta de Franquia. Ela era emitida por um nobre em troca do pagamento de grande monta de moedas. Esse documento garantia a autonomia administrativa e judiciária dentro do burgo.
Contudo, em muitas situações, os senhores feudais resistiram e se negaram a reconhecer a independência dos burgos. Nesses casos, os burgueses recorriam ao rei-suserano de um senhor-vassalo.
O rei continuou existindo e era o suserano de alguns senhores feudais vassalos que lhe deviam fidelidade. Então, em alguns momentos, os reis usaram seu poder hierárquico e intermediaram esses conflitos.
Alguns historiadores chamam isso de uma aliança do rei com a burguesia, na busca da retomada do seu poder e prestígio no contexto de desagregação do feudalismo.
Novas instituições
Quanto mais livres e independentes eram as cidades, mais o comércio e o artesanato prosperavam. Diante desse cenário, novas instituições surgiram. As principais foram:
As Corporações de Ofício eram comandadas pelos mestres-artesãos, em geral, os donos das oficinas. Eles empregavam pessoas que aprendiam um ofício em troca de trabalho nas oficinas. Recebiam ainda alojamento, alimentação e vestuário.
Os aprendizes poderiam se tornar oficiais e, a depender de autorização da Corporação de Ofício, poderiam se tornar mestres de ofício e ter sua própria oficina. Essa aprendizagem tinha duas graduações: aprendiz e oficial.
As cidades, que plantavam as sementes para um novo mundo, uma nova mentalidade, uma nova forma de ser e de sentir, de fazer riqueza e de desafiar as agruras da vida, forjavam os instrumentos para romper com a rigidez da sociedade feudal.
As corporações de ofício são um exemplo de que existia mais mobilidade social, a partir da atividade artesanal, do que no feudo, apesar do controle e da intervenção dessa instituição.
Assim, mesmo com muitas limitações estruturais feudais, houve um lento enriquecimento de comerciantes e artesãos que, ao longo do tempo, controlaram com exclusividade determinadas atividades. Esse processo indica a formação de uma nova classe social: a burguesia.
Apenas atente-se de que estamos falando de um “processo de formação de classe social”. Portanto, isso é uma engrenagem que se movimentou por muitos séculos depois desse momento inicial.
Então, nesse momento histórico, a burguesia quer ser aceita pela nobreza e ser parte dela. Por isso, ela quer ganhar dinheiro e, com ele, comprar terras e títulos de nobiliárquicos.
A burguesia ainda não era aquela da Revolução Francesa, que derrubou o rei e cortou sua cabeça. Na passagem do feudalismo para a Idade Moderna ela não é contra a nobreza. Neste momento, ela procurava apenas imitar, ser parte e igual aos nobres.
Contudo, sabemos que isso é muito905d99-85c1-4dea-aa0b-60a7a4374f83″ class=”textannotation”> difícil, porque títulos de nobreza não eram monetizados. Afinal, era um título de propriedade só adquirível por meio da doação de um outro nobre e, para tanto, a pessoa tinha que nascer no berço de uma família da nobreza. Como é que a burguesia conseguiria ser nobre um dia?
Além disso, a nobreza sempre encarava a burguesia com desprezo e nunca como iguais. Afinal, seu dinheiro vinha do trabalho e não era uma coisa bem vista pela nobreza.
Lembre-se de que os que foram criados por Deus para trabalhar foram os servos – visão religiosa da criação das três Ordens Sociais. A Meritocracia é um valor que só vai tomar a cena da história lá pelo século XVII.
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- Baixa Idade Média: As transformações no Feudalismo
Texto elaborado com base no material didático da professora Alê Lopes.
Referências
26LE GOFF, Jacques. A bolsa e a vida: economia e religião na Idade Média. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1989
27LE GOFF, J. A civilização do Ocidente Medieval. Lisboa: Editora Estampa, 1983, pp. 102, 103,107.
28VICENTINO, Claudio. Idem, p. 229