Ao longo das últimas semanas, o portal Estratégia Militares trouxe um conteúdo bastante extenso sobre o período histórico da Idade Média. Nesta última parte, vamos tratar das crises que assolaram os séculos XIV e XV. Confira a seguir!
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Período histórico
A baixa Idade Média vai do século XIV ao XV e trata-se do último ato da Idade Média. Foi o cenário onde as crises mais profundas da desagregação do feudalismo aconteceram.
Em momentos de transição, nem sempre há o compasso temporal entre a desagregação do antigo modo de vida e o estabelecimento e consolidação do novo. Por isso, historiadores afirmam que, em grande medida, foi a própria expansão econômica e populacional das sociedades cristãs medievais, a partir do século XI, que contribuíram para as crises que veremos a partir de agora.
Assim, esse período viveu a experiência da Fome, da Peste, da Guerra e de uma importante crise econômica. Porém, viu também o alvorecer de um novo tempo impulsionado por novos questionamentos sobre a vida, o homem, o mundo e, também, as questões religiosas. Para Jacques Le Goff, o saldo da crise do século XIV “foi uma reorganização do mapa econômico e social da cristandade” (LE GOFF, Jacques. A Civilização do Ocidente Medieval. Lisboa: Editorial Estampa. 1983. p. idem, p.145).
Mais que isso, a crise da Baixa idade Média fez surgir a Renascença e os Tempos Modernos, o que foi, para muitos, bem mais aberto e, talvez, mais feliz do que a fechada e asfixiante vida feudal.
Crise do século XIV
No contexto que acabamos de apresentar, o século XIV concentra o momento mais grave para a cristandade europeia. Tanto que a historiografia costuma associar este século a um tripé de eventos: a fome, a peste e a guerra. Le Goff afirma que:
“Mas, na viragem do século XIII para o século XIV, a Cristandade não só parou como encolheu. Não houve novos desbravamentos, novas conquistas de solo, e as terras marginais, que tinham sido cultivadas sob a pressão demográfica e na mira da expansão, foram abandonadas porque o rendimento que davam era, na verdade, muito baixo. […] A curva demográfica inflete e começa a descer.” (LE GOFF, Jacques. A Civilização do Ocidente Medieval. Lisboa: Editorial Estampa. 1983. idem, p. 141)
Para além da fome, da guerra e da peste que marcaram a crise do século XIV, Le Goff e Perry Anderson, por perspectivas distintas, afirmam que esta tríade na verdade é a consequência de um processo de desagregação das estruturas sociais e econômicas do mundo feudal cristão.
Crise econômica
Vários sintomas de crise econômica surgiram nesse momento. A primeira delas foi uma série de desvalorizações monetárias. Muitos bancos faliram em 1343. Houve inadimplência (não pagamento) das enormes dívidas que alguns nobres fizeram nos anos anteriores, o que dificultou a manutenção dos empréstimos das casas bancárias que ainda resistiam.
Isso fragilizou a economia das cidades, que dependiam dessas casas bancárias. Na cidade, a produção têxtil declinou, juntamente com a construção civil, devido à paralisação das obras de catedrais e igrejas, que ajudaram a diminuir a oferta de trabalho livre nas cidades.
Apesar disso, é importante ressaltar que essa depressão econômica não atingiu todos os setores e lugares. A crise é sinal de um processo de reorganização. O mesmo ocorreu com a economia. O melhor exemplo é o do setor têxtil. As manufaturas de tecido de luxo deram lugar às confecções de tecidos menos valiosos.
Além disso, alguns senhores feudais foram se adaptando às novas realidades e começaram a criar gado, mais valioso nessa época. Por fim, como ensina o professor Le Goff: “só os mais poderosos, os mais hábeis ou os mais bem-sucedidos tiram proveito; os outros são atingidos” (LE GOFF, Jacques. A Civilização do Ocidente Medieval. Lisboa: Editorial Estampa. 1983. p. 145).
Fome
A expansão agrícola dos séculos XI ao XIII chegou ao fim na primeira metade do século XIV. A principal consequência, então, foi a fome. O fenômeno ocorreu entre 1315 e 1322 – acentuadamente entre os anos de 1315 e 1317.
A “Grande Fome” está relacionada imediatamente com as seguintes causas:
- Resistência dos nobres em permitir a ampliação das terras agricultáveis por meio da derrubada das florestas: os bosques eram lugar de caça, o esporte favorito da nobreza. Além disso, era fonte de mel, cera e madeira, todos elementos luxuosos e de necessidade essencial para manter seus castelos iluminados e aquecidos;
- Esgotamento de boas terras para a agricultura: as terras dos antigos mansos comunais não tinham o mesmo potencial agrícola que as demais. Assim, o excedente de produção não acompanhava a proporção do excedente populacional;
- Aumento excessivo dos preços dos alimentos somado ao aumento abusivo das taxas impostas pelos senhores de terra; e
- Fatores climáticos: entre 1315 e 1317 foi um período de muitas chuvas e umidade.
Peste
Entre 1347 e 1350, com a memória viva da devastação causada pela Grande Fome, as épocas frias e chuvosas que ocorreram no começo do século fizeram com que a população europeia vivesse uma epidemia transmitida pela pulga de ratos contaminados com a bactéria pasteurella pestis, a peste bubônica.
A doença era popularmente chamada de peste negra, pois provocava feridas com pus e deixava marcas pretas no corpo.
Nesse momento, as condições sanitárias, de alimentação, de saúde e de moradia eram muito ruins nas cidades medievais na Europa. Como sabemos, o cenário era de renascimento comercial e urbano e, portanto, de maior circulação de pessoas, mercadorias e doenças. Historiadores medievalistas afirmam que cerca de 25 milhões de pessoas morreram nesse momento.
A porta de entrada da peste foi a cidade italiana de Gênova. Leia a descrição feita pela historiadora Bárbara Tuchman29:
“Em outubro de 1347 (…) Navios genoveses chegaram ao porto de Messina,na Silícia, com homens mortos e agonizantes nos remos. (…) Os marinheiros doentes tinham estranhas inchações escuras,do tamanho de um ovo ou uma maçã nas axilas e virilhas,que purgavam pus e sangue e eram acompanhadas de bolhas e manchas negras por todo corpo, provocadas por hemorragias internas. (…) Sentiam muitas dores e morriam rapidamente (…)”
O imaginário popular religioso da época atribuía aquela situação de morticínio a um “castigo divino”, em razão dos vícios e pecados da humanidade. Deus era tido como um juiz temerário, que enviava a morte como punição, para toda a humanidade. O medo se espalhava e, com ele, a violência e hordas de pessoas perambulando pelas estradas europeias. A insegurança voltou a reinar no continente.
Esses momentos foram tão significativos na história do fim da Idade Média que muitos pintores renascentistas ainda pintaram “a morte do século XIV”.
“A Peste Negra dizimou boa parte da população europeia, com efeitos sobre o crescimento das cidades. O conhecimento médico da época não foi suficiente para conter a epidemia. Na cidade de Siena, Agnolo di Tura escreveu: “As pessoas morriam às centenas, de dia e de noite, e todas eram jogadas em fossas cobertas com terra e, assim que essas fossas ficavam cheias, cavavam-se mais. E eu enterrei meus cinco filhos com minhas próprias mãos (…) E morreram tantos que todos achavam que era o fim do mundo.”30
Guerra e rebeliões camponesas
Em 1358 ocorreu, na região da atual França, uma enorme e violenta rebelião camponesa. Esse evento, que não durou mais que um mês, expôs a tensão latente que existia entre senhores e servos.
Como vimos, os senhores feudais ampliaram sucessivamente o montante de taxas a serem pagas pelos servos no processo de expansão da economia. Além disso, o fenômeno da grande fome atingiu sobretudo servos que não contavam com acúmulo de produção em grandes celeiros, como os nobres.
Estes, inclusive, aumentaram mais ainda as taxas a serem pagas pelos servos que ainda continuavam na terra. Esse contexto expôs a grande desigualdade existente entre as três ordens sociais que compunham a sociedade feudal.
Os servos se revoltaram tanto contra seus senhores, que os super exploravam, como contra a Igreja que, longe dos ensinamentos cristãos de caridade, humildade, simplicidade, abandonaram os fiéis à própria sorte nesse cenário apocalíptico.
A exploração abusiva provoca resistências – que poderiam ser passivas, silenciosas e negociais. Assim, já havia durante toda a Idade Média várias manifestações de resistência dos servos e camponeses. Foram deserções, fugas para os bosques, roubos nas terras dos senhores, incêndios nas plantações e nos celeiros etc.
Mas, em 1358, diante daquele contexto, surgiu uma enorme e muito violenta rebelião. Foi chamada Jacquerie, uma expressão idiomática francesa que significa “João ninguém”.
A violência cruel é a característica mais marcante dessa rebelião. Centenas de milhares de camponeses se juntavam para invadir os castelos e assassinar senhores. A resposta de nobres também foi igualmente violenta.
O sentimento de ódio recíproco, tão amainado pelo discurso religioso durante séculos, ficou marcado nas memórias orais do campesinato francês e em diversas obras renascentistas do século XV e XVI.
Além das revoltas de caráter popular, como a Jacquerie, o contexto do século XIV também é marcado pela chamada Guerra dos Cem Anos. Foi um longo conflito entre a França e a Inglaterra ocorrido entre 1337 e 1453.
O conflito envolvia a disputa de sucessão dinástica na França e pelo controle das ricas terras na região de Flandres, onde ocorria uma importante feira medieval. Essa guerra contribuiu para o clima de insegurança da Europa.
O professor Le Goff argumenta que a Guerra dos Cem Anos foi uma solução fácil encontrada por nobrezas atingidas pela crise. Independentemente de mortes ou ruínas econômicas, ela gerou uma nova economia e uma nova sociedade.
Mas, atenção! Nem a França e nem a Inglaterra eram Estados centralizados nesse contexto da Guerra dos Cem Anos. Então, falar em ambos como países é um pouco inapropriado, pois eram regiões feudais. Sobretudo, a França.
Ter essa noção é fundamental para que possamos compreender a exata importância dessa guerra justamente no processo de centralização política da Inglaterra e da França.
Esse longo conflito empobreceu uma parcela da nobreza, mas contribuiu fortemente para a retomada da importância do poder real. Essa situação possibilitou a construção de monarquias centralizadas.
Conclusão
Se a crise do século XIV é a demonstração de que havia uma reorganização do modo de vida social, político e econômico da Europa, qual o saldo que ela deixa para os anos, décadas e séculos que se seguiram depois desses fenômenos? Seriam os seguintes:
- A centralização Estatal;
- Reorganização das monarquias;
- Novas formas artísticas para expressar outras visões de mundo; e
- Novas formas de fazer comércio.
Para exemplificar, abaixo está uma das obras mais significativas sobre essa experiência do século XIV e XV. Observando atentamente cada quadrante, é possível verificar que é uma composição de múltiplas obras. Ela foi pintada dessa forma pelo renascentista Pieter Bruegel, o Velho, em 1562. Chama-se “O Triunfo da Morte”.31
Na pintura estão inscritos todos os problemas do século XIV: a fome, a guerra, a morte, todo tipo de violência, as revoltas sociais, os questionamentos em relação à igreja, o medo do pecado e os vícios humanos… e tudo isso atinge todas as classes sociais – de maneira diversa, claro. Por isso, é uma marca da história da formação da sociedade europeia.
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Texto elaborado com base no material didático da professora Alê Lopes.
Referências bibliográficas
29TUCHMAN,B.W. Um espelho distante: o terrível século XIV. Rio de Janeiro: José Olympio,2000,p.97.
30Agnolo di Tura. The Plague in Siena: An Italian Chronicle. In: William M. Bowsky. The Black Death: a turning point in history? New York: HRW, 1971
31O Triunfo da Morte, c.1562, óleo sobre madeira, 117 x 162 cm, Pieter Bruegel, o Velho