No princípio eram as árvores
Os livros são filhos das árvores, que foram o primeiro lar da nossa espécie e, talvez, o mais antigo receptáculo das palavras escritas. A etimologia da palavra contém um velho relato sobre os primórdios. Em latim, liber, que significa “livro”, originariamente dava nome à casca da árvore ou, mais exatamente, à película fibrosa que separa a casca da madeira do tronco. Plínio, o Velho, afirma que os romanos escreviam em cascas de árvore antes de conhecer os rolos egípcios. Durante muitos séculos, diversos materiais — o papiro, o pergaminho — ocuparam o lugar daquelas antigas páginas de madeira, mas, numa viagem de ida e volta, com adoção do papel, os livros voltaram a nascer das árvores.
Como eu já expliquei, os gregos chamavam o livro de biblion, rememorando a cidade fenícia de Biblos, famosa pela exportação de papiro. Atualmente o emprego dessa palavra, em sua evolução, ficou reduzido ao título de uma única obra, a Bíblia. Para os romanos, liber não evocava cidades nem rotas comerciais, mas o mistério do bosque onde seus antepassados começaram a escrever, em meio aos sussurros do vento nas folhas. Os nomes germânicos — book, Buch, boek — também descendem de uma palavra arbórea: a faia de tronco esbranquiçado.
Em latim, o termo que significa “livro” tem quase o mesmo som que o adjetivo que significa “livre”, embora as raízes indo-europeias de ambos os vocábulos tenham origens diferentes. Muitas línguas neolatinas, como o espanhol, o francês, o italiano e o português, herdaram a coincidência dessa semelhança fonética, que convida ao jogo de palavras, identificando leitura e liberdade. Para os iluministas de todas as épocas, são duas paixões que sempre acabam confluindo.
Hoje aprendemos a escrever com luz sobre telas de cristal líquido ou de plasma, mas ainda ouvimos o chamado originário das árvores. Em suas cascas redigimos um disperso inventário amoroso da humanidade. Antonio Machado, em seus passeios pelos Campos de Castela, costumava parar junto ao rio para ler algumas linhas desse livro dos amantes:
Voltei a ver os álamos dourados,
álamos do caminho na ribeira
do Douro, entre San Polo e San Saturio,
atrás das muralhas velhas de Soria [...].
Estes choupos do rio, que acompanham
com o som de suas folhas secas
o som da água, quando o vento sopra,
têm em suas cascas
gravadas iniciais que são nomes
de apaixonados, números que são datas.
Quando um adolescente risca duas iniciais com a ponta do canivete na casca prateada de um álamo, reproduz, sem saber, um gesto muito antigo. Calímaco, o bibliotecário de Alexandria, já menciona no século Ill a.C. uma mensagem amorosa numa árvore. Não é o único. Um personagem de Virgílio imagina como a casca, com o passar dos anos, irá se alargar e corroer seu nome e o dela: “E gravar meus amores nas jovens árvores; crescerão as árvores e com elas crescerão vocês, amores meus." Talvez o costume, ainda vivo, de tatuar letras na pele de uma árvore para conservar a lembrança de alguém que viveu e amou tenha sido um dos episódios mais antigos de escrita na Europa. Talvez, à beira de um rio que corre e passa e sonha, como dizia Machado, os antigos gregos e romanos tenham escrito os primelros pensamentos e as primeiras palavras de amor. Sabe-se lá quantas dessas arvores acabaram se transformando em livros.
Fonte: VALLEJO, Irene. O Infinito em um Junco: A Invenção dos Livros no Mundo Antigo. Tradução de Paulina Wacht e Ari Roitman. 1ª ed. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2022.
GLOSSÁRIO:
Álamo — árvore ornamental de flores pequenas e casca rugosa, o mesmo que choupo;
Papiro — folha para escrever feita das hastes dos juncos provenientes das margens do rio Nilo;
Pergaminho — pele de cabra ou de ovelha preparada para a escrita ou encadernação;
Choupos — o mesmo que álamo;
Junco — nome comum a várias plantas herbáceas;
Fala — espécie de árvore; e
Indo-europeu — origem comum das Iínguas europeias.
I - A etimologia da palavra latina líber.
Il - A afirmação de Plínio, o Velho.
Ill - A etimologia da palavra biblion.
IV - O poema de Antonio Machado.
V - O registro de Calímaco, bibliotecário de Alexandria.
VI - Um personagem de Virgílio.
Das afirmativas feitas acima, marque apenas as que apresentam os argumentos favoráveis à tese da autora: