A paixão pelo futebol no Brasil vem esgarçando os limites da língua portuguesa há aproximadamente um século. Como qualquer outra língua, o português é vivo, dinâmico, aberto ao que o povo inventa na rotina de seus afazeres e lazeres. Com um diferencial: a espontaneidade brasileira, talentosa em driblar convenções, acaba desencadeando um vocabulário futebolístico rico e bem-humorado, utilizado até mesmo pelos “esquisitões” que odeiam o esporte − a vingança dos fanáticos contra as exceções! Assim é possível ouvir a cada esquina frases do tipo: fulano “pisou na bola”, ou sicrano “joga nas onze”. A rua torna-se o melhor dicionário desse léxico matreiro, inventado por jogadores, locutores e comentaristas esportivos, pouco a pouco absorvido pela língua geral. Ao ser dicionarizada, a gíria do futebol ganha status de verbete, e comemora-se: a lexicogafria dobra-se à força do jargão e sela sua vitória no cotidiano linguístico brasileiro.
Ao atingir pelo menos cinco anos de uso contínuo, uma palavra alcança, enfim, um dos “olimpos” dos vocábulos: o dicionário Aurélio. O Houaiss tem critério similar, embora não estipule um tempo exato. São tantas as expressões já incorporadas que por vezes a origem futebolística é esquecida no dia a dia.
O próprio verbo “driblar”, usado no início deste texto, é um exemplo: no Aurélio é descrito como ato de “ultrapassar o adversário, ludibriando-o por meio de movimentos corporais”. Embora signifique o movimento específico do jogador com a bola, o seu uso na linguagem corrente extrapola as margens do campo, sugerindo uma forma de subverter determinada situação − o que, aliás, cabe bem na tradição de uma certa “malandragem” brasileira e diz muito da intimidade do cidadão com a sua língua.
Como atesta Ivan Cavalcanti Proença em Futebol e Palavra, “o jogador brasileiro é o que fala e fala o que é” − e isso acontece “através de um clima (e de uma força mesmo) intensamente poético: é a poesia do futebol, arte”.
Essa poesia urdida na tradição oral e enriquecida literariamente por autores como Nelson Rodrigues possui uma só raiz: a paixão − seja do jogador, do torcedor ou do comentarista esportivo.
“Sempre que deixamos a emoção tomar conta da linguagem, surgem vocábulos e expressões extremamente criativos e ricos para nossa língua. O brasileiro, particularmente, é um povo que expressa sua emoção de uma maneira muito espontânea, fato que se reflete também na linguagem, mais especificamente, no léxico”, explica Simone Nejaim Ribeiro, professora de língua portuguesa da Universidade Estácio de Sá. Simone concorda com outros estudiosos do tema, para quem o vocabulário do futebol é uma “linguagem especial”. Assim, alguns vocábulos que poderiam, de início, soar como “desvios linguísticos” deixam a margem para serem canonizados. É a razão sucumbindo à paixão.
Mas quem, afinal, formula todo esse jargão? “As expressões são uma criação dos jogadores e da imprensa. Romário criou, por exemplo, a expressão ‘peixe’ para chamar algum companheiro, mas foram os jornalistas esportivos que, influenciados pela Liga Profissional de Basquete (NBA), inventaram o termo ‘assistência’, para o jogador que dá o passe para outro marcar o gol, diz Antonio Nascimento, editor de Esporte do jornal O Globo.
Foi dessa forma que grandes nomes da locução e da crônica esportiva deixaram seu legado à língua portuguesa. João Saldanha, por exemplo, criou a divertida expressão “macaquinho namorado de girafa” (jogador que sobe e desce no campo, como um símio que namorasse a girafa e se movimentasse para cima e para baixo, tentando beijá-la) − muitas destas, entretanto, saem de moda e pairam apenas nos arquivos imaginários de torcedores de todos os tempos.
Nelson Rodrigues cunhou expressões tornadas tão populares quanto “sandálias da humildade” e divertiu-se lançando modismos, como pose de “Sarah Bernhardt em noite de estreia” (designando o jogador confiante demais). Inúmeras gírias não chegam ao dicionário, ou entram numa edição e saem na edição seguinte, por caírem em desuso. Dos 228.500 verbetes do dicionário Houaiss, os que possuem a rubrica “futebol” são cerca de 0,22%, ou seja, apenas 502. Não é muito, mas Silvio Lancellotti compreende o caráter volátil desse “dialeto” dos campos: “A dicionarização dos neologismos nem sempre acompanha a velocidade da linguagem especial. Nem vai conseguir”.
A questão da incorporação dessa linguagem pela língua portuguesa é tão antiga quanto o esporte. Max Gehringer, colunista da revista Época e comentarista da rádio CBN, apresenta argumentos históricos para explicar o começo de tudo:
“O futebol chegou ao Brasil na última década do século 19, principalmente por meio de ingleses e escoceses. Na época não tínhamos palavras nossas para traduzir os termos britânicos e fizemos o mais fácil: ‘abrasileiramos’ a sua pronúncia. Daí surgiram ‘futebol’ (football), ‘golquipa’ (goalkeeper), ‘pênalti (penalty) e ‘alfo’ (half). Em 1906, insatisfeito com essa invasão de estrangeirismos, um filólogo brasileiro, o carioca Antonio de Castro Lopes, propôs mudar o anglicismo ‘futebol’ para ‘ludopédio’ (alegria com os pés). Obviamente, a proposta foi rechaçada. E o povo continuou a falar como melhor lhe convinha.”
De lá para cá, a imprensa esportiva encarregou-se de substituir palavras inglesas, sendo algumas aceitas e repetidas no cotidiano, enquanto outras não emplacaram. Teixeira Heizer, comentarista do SporTV, descreve essa trajetória:
“A simplificação da linguagem aconteceu na mão e na contramão da história. Das cabines de rádio e das mesas dos editores de jornais emergiu uma terminologia ao alcance de todas as camadas sociais, sobretudo as mais populares: o público das arquibancadas e gerais.”
O surgimento de neologismos de “gosto discutível”, diz Heizer, foi inevitável, afinal, “os inovadores nada tinham de filólogos, lexicólogos, gramáticos”. E assim um léxico vivaz, ainda que por vezes trôpego, foi sendo construído numa espécie de margem paralela à língua portuguesa, tocando-a em alguns momentos, ou mesmo desafiando-a.
A importância do futebol na cultura nacional certamente fornece amplo conteúdo para invencionices, afinal, detalhes rocambolescos sobre jogadas, escalações e gols são discutidos diariamente entre colegas de trabalho e vizinhos de bairro, em praças e ruelas das cidades. Se o tema é futebol, há sempre alguém com um palpite na ponta da língua. E haja vocabulário para acompanhar!
HIDALGO, L. O futebol na ponta da língua. Revista Língua Portuguesa, 2006.
A construção verbal “vem esgarçando”, encontrada na primeira linha do texto, apresenta significação de