A memória cria a literatura, e a literatura cria a memória. Com essa ideia podemos nos situar na relação entre essas funções que, juntas, inventam historicamente o lugar onde ainda pode habitar a inarquivável alma humana.
A memória sempre foi uma grande questão teórica e prática. A história da memória corresponde a "arte da memória" que se perdeu diante da luta do princípio do progresso da ciência moderna contra a tradição. [...]
Não podemos deixar de nos colocar a pergunta crucial sobre o lugar da natural memória humana no tempo do arquivo artificial, do armazenamento de dados no mundo digital. O conhecimento que dava base à ideia de subjetividade, nome moderno da alma, sempre dependeu de mnemotécnicas. Adquirir conhecimento sempre implicou memorizá-lo. Hoje, preocupados em "emitir" ansiosamente qualquer informação por meio da internet, sobretudo em redes sociais, não é absurda a impressão de que não se quer mais adquirir memória, mas livrar-se dela.
Que a história da memória esteja ligada a esforços da tradição ocultista transfigurados pela ciência moderna sinaliza para o abandono do tema da alma em nome das vantagens das tecnologias, cujos resultados mais diretos quanto a uma utilização pragmática da memória, tal como a vemos hoje, sempre encantou aqueles que, loucos por arquivos, museus, computadores, parecem ter pressa de viver. Quem tem pressa de viver quer os dados, não a experiência do tempo que se encontra, por exemplo, em um livro. Quem tem pressa quer o arquivo, não o livro.
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O acontecimento que é a literatura tem lugar na experiência individual e se aniquila no encontro com o ar viciado da globalização onde o particular é perdido, assim como é perdido o universal no qual o particular poderia se reconhecer. Ali, onde ninguém mais pode ser, a literatura dá lugar a quem escreve e lê, por recriar a ficção de si - narrador e personagens - na função poética sempre reinventada entre o eu e o tempo. Por isso, a literatura hoje é transfiguração da vida em ficção, e da ficção em vida. A ficção é a verdade mais íntima da vida, do texto em que o protagonismo depende do gesto de recriar-se.
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Mas a literatura do testemunho expõe a verdade de toda a literatura: quem escreve o faz por ser testemunha do seu tempo. Por saber que sobreviver, assim como viver, requer a presença atenta do leitor, alguém a quem se conta alguma coisa na qual não se pode acreditar.
O escritor é cada vez mais aquele que encarna uma tarefa que se tornou histérica, a de ir em busca do tempo perdido, de uma memória que, escapando ao arquivo, é anarquívica. [...]
A literatura é ainda a arte da memória quando não se trata mais de produzir arquivos. A literatura não é museu, é experiência da memória viva. Livros revelam o anarquívico desejo de memória, mãe da esquecida arte de viver que ainda é tempo de recuperar,
TIBURI, Márcia. O papel da memória e da literatura na era digital. Disponível em http://zh.clicrbs.com.br - com adaptações.
Em "A literatura não é museu, é experiência da memória viva." (8º§), infere-se que o museu