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Sprint Oficialato (ITA/IME/EFOMM/EN/AFA) - Inéditas
2020
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A flor e a náusea

Preso à minha classe e (i) algumas roupas
vou de branco pela rua cinzenta.
Melancolias, mercadorias espreitam-me.
Devo seguir até o enjoo?
Posso, sem armas, revoltar-me?

Olhos sujos no relógio da torre:
Não, o tempo não chegou de completa justiça.
O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera.
O tempo pobre, o poeta pobre
fundem-se no mesmo impasse.

Em vão me tento explicar, os muros são surdos.
Sob a pele das palavras (ii) cifras e códigos.
O sol consola os doentes e não os renova.
As coisas. Que tristes são (iii) coisas, consideradas sem ênfase.

Vomitar esse tédio sobre a cidade.
Quarenta anos e nenhum problema
resolvido, sequer colocado.
Nenhuma carta escrita nem recebida.
Todos os homens voltam para casa.
Estão menos livres mas levam jornais
e soletram o mundo, sabendo que o perdem.

Crimes da terra, como perdoá-los?
Tomei parte em muitos, outros escondi.
Alguns achei belos, foram publicados.
Crimes suaves, que ajudam a viver.
Ração diária de erro, distribuída em casa.
Os ferozes padeiros do mal.
Os ferozes leiteiros do mal.
Pôr fogo em tudo, inclusive em mim.
Ao menino de 1918 chamavam anarquista.
Porém meu ódio é o melhor de mim.
Com ele me salvo
e dou a poucos uma esperança mínima.

Uma flor nasceu na rua!
Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem os negócios,
garanto que uma flor nasceu.

Sua cor não se percebe.
Suas pétalas não se abrem.
Seu nome não está nos livros.
É feia. Mas é realmente uma flor.

Sento-me no chão da capital do país (iv) cinco horas da tarde
e lentamente passo a mão nessa forma insegura.
Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se.
Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico.
É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.

ANDRADE, Carlos Drummond de. A rosa do povo. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

A expressão Ração diária de erro, distribuída em casa (verso 26) se refere no texto
A
o uso das cores no período não é gratuito, já que ao fazer essa opção o poeta deixa evidente que, apesar de seu aparente deslocamento no mundo, o poeta e a rua estão fundidos.
B
há uma contraposição entre as cores branca e cinza, em que a primeira, comumente associada à pureza, denota a inadequação do poeta no mundo cinza, cor muito ligada à sujeira ou à impureza.
C
a classe e as roupas são marcadores sociais e, portanto, ao dizer que utiliza a cor branca, o poeta deixa implícito que essa era a cor do traje comum entre os artistas da época.
D
a cor cinzenta da rua é uma forma de crítica social do poeta que indica no verso 2 uma persistência do problema da poluição na cidade, mesmo que o poema não seja contemporâneo.
E
esse período denota um posicionamento político do poeta que, ao longo do texto demonstra ser um apoiador da sociedade vigente, o que se comprova pela expressão “preso à minha classe”.