E agora, ainda por cima, é seu aniversário. Você tem andado apavorada com ele. É a mensagem de texto que você tem enviado aos amigos há dias: ando apavorada com o meu aniversário. Acrescida de um emoji desesperado. Olhos em X, boca aberta em O. Zombando de si mesma e de seu medo bobo. Mas o medo é para valer. É por isso que você veio, afinal de contas. Ao local que encontrou acessando a dark web. Aberto mesmo durante o confinamento. Um apartamento de cobertura no centro da cidade. Uma sala de tratamento sombria e uterina recendendo a vapor e eucalipto. Com iluminação amena. Você está nua, deitada em uma mesa aquecida. Uma mulher aperta o seu rosto usando algum tipo de extrato de placenta de cabra. Você sente os nós dos dedos dela pressionando com força as maçãs do seu rosto, drenando linfa. Estava precisando de uma drenagem, diz ela, baixo.
— Com certeza — você sussurra. — Drene bem.
A mulher não aparentava idade com aquele traje preto e o cabelo puxado em coque para trás.
Respire fundo três vezes, e pronto, disse ela. Vou fazer junto com você. Melhor eu fazer com você?
Ela besuntou as mãos com óleo essencial e as deixou suspensas acima da sua boca e nariz. Não se preocupe, disse ela, pressentindo, talvez, seu medo, sua hesitação. Nós tomamos todas as precauções. Bem, tudo bem. Vocês respiraram fundo juntas. Sentiram os pulmões enchendo e esvaziando.
Pronto, disse ela. Melhorou, não é?
Você ouvia uma fonte marulhar ao longe. Música suave feita de instrumentos não identificados. Parecia o reboar infinito de um sino sinistro. Mas lindo.
Aí ela diz:
— Agora vou acender a luz para poder avaliar a sua pele. A luz é forte, então vou cobrir os seus olhos. — Ela pressiona um disco de algodão úmido sobre cada uma de suas pálpebras fechadas. Você pensa em moedas sobre olhos de defuntos. A luz é tão forte que você a pressente sob o algodão. Vermelha incandescente. Esquenta o rosto. E os evidentes olhos dela. Perscrutando você.
— Bem — você diz, afinal, porque não aguenta mais o silêncio. — Qual o veredito?
— Você teve um ano difícil, não?
Você se imagina sozinha e apavorada em seu apartamento. Trêmula no seu sofá-ilha. O corpo pegando fogo. Respirando feito uma afogada enquanto lágrimas vertiam dos seus olhos.
— Todo mundo teve, não? — você diz, baixo.
Ela fica calada. O cheiro de eucalipto está ficando sufocante.
— Está tudo aqui, infelizmente — diz ela, por fim. Seus dedos delineiam os vincos de sua testa, as rugas marcadas entre as sobrancelhas. Os vasos em volta do nariz, os sulcos ladeando a boca. Rugas naso-labiais, o nome certo delas, você ficara sabendo. Rugas de riso que nem de risada nasceram. Ela as tateia com tanto desvelo que uma lágrima escorre dos seus olhos. Ela retira os discos de algodão das suas pálpebras e ergue um espelho à frente do seu rosto.
(Projeto Decamerão. 29 histórias da Pandemia.)
Assinale, dentre as alternativas a seguir, aquela em que apresenta uma figura de linguagem.