Questão
Escola Naval - EN
2014
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 VELHO MARINHEIRO 

Homenagem aos marinheiros de sempre... e para sempre. 

Sou marinheiro porque um dia, muito jovem, estendi meu braço diante da bandeira e jurei lhe dar minha vida. 

Naquele dia de sol a pino, com meu novo uniforme branco, senti-me homem de verdade, como se estivesse dando adeus aos tempos de garoto. Ao meu lado, as vozes de outros jovens soavam em uníssono com a minha, vibrantes, e terminamos com emoção, de peitos estufados e orgulhosos. Ao final, minha mãe veio em minha direção, apressada em me dar um beijo. Acariciou-me o rosto e disse que eu estava lindo de uniforme. 0 dia acabou com a família em festa; eu lembro-me bem, fiquei de uniforme até de tarde... 

Sou marinheiro, porque aprendi, naquela Escola, o significado nobre de companheirismo. Juntos no sofrimento e na alegria, um safando o outro, leais e amigos. Aprendi o que é civismo, respeito e disciplina, no princípio, exigidos a cada dia; depois, como parte do meu ser e, assim, para sempre. A cada passo havia um novo esforço esperando e, depois dele, um pequeno sucesso. Minha vida, agora que olho para trás, foi toda de pequenos sucessos. A soma deles foi a minha carreira. 
        
No meu primeiro navio, logo cedo, percebi que era novamente aluno. Todos sabiam das coisas mais do que eu havia aprendido. Só que agora me davam tarefas, incumbencias, e esperavam que eu as cumprisse bem. Pouco a pouco, passei a ser parte da equipe, a ser chamado para ajudar, a ser necessário. Um dia vi-me ensinando aos novatos e dei-me conta de que me tornara marinheiro, de fato e de direito, um profissional! O navio passou a ser minha segunda casa, onde eu permanecia mais tempo, Às vezes, do que na primeira. Conhecia todos, alguns mais até do que meus parentes. Sabia de suas manhas, cacoetes, preocupações e de seus sonhos. Sem dar conta, meu mundo acabava no costado do navio.

A soma de tudo que fazemos e vivemos, pelo navio, é uma das coisas mais belas, que só há entre nós, em mais nenhum outro lugar. Por isso sou marinheiro, porque sei o que é espírito de navio.

Bons tempos aqueles das viagens, dávamos um duro danado no mar, em serviço, postos de combate, adestramento de guerra, dia e noite. O interessante 6 que em toda nossa vida, quando buscamos as boas recordações, elas vêm desse tempo, das viagens e dos navios. Até as durezas por que passamos são saborosas ao lembrar, talvez porque as vencemos e fomos adiante.

É aquela história dos pequenos sucessos. 

A volta ao porto era um acontecimento gostoso, sempre figurando a mulher. Primeiro a mãe, depois a namorada, a noiva, a esposa. Muita coisa a contar, a dizer, surpresas de carinho. A comida preferida, o abraço apertado, o beijo quente... e o filho que, na ausência, foi ensinado a dizer papai. 

No início, eu voltava com muitos retratos, principalmente quando vinha do estrangeiro, depois, com o tempo, eram poucos, até que deixei de levar a máquina. Engraçado, vocês já perceberam que marinheiro velho dificilmente baixa a terra com máquina fotográfica? Foi assim comigo. 

Hoje os navios são outros, os marinheiros são outros - sinto-os mais preparados do que eu era - mas a vida no mar, as viagens, os portos, a volta, estou certo de que são iguais. Sou marinheiro, por isso sei como é. 

Fico agora em casa, querendo saber das coisas da Marinha. E a cada pedagogo que algo de um amigo, que leio, que vejo, me dá um orgulho que às vezes chega a entalar na garganta. Há pouco tempo, voltei a entrar em um navio. Que coisa linda! Sofisticado, limpíssimo, nas mãos de uma tripulação que pode ser muito competente para mantê-lo pronto. Do que me mostraram eu não sabia muito. Basta dizer que o último navio em que servi já deu baixa. Quando sai de bordo, parei no portaló, voltei para a bandeira, inclinei a cabeça... e, minha garganta entalou outra vez. 

Isso é corporativismo; não aquele enxovalhado, que significa o bem de cada um, protegido A custa do desmerecimento da instituindo; Mas o puro, que significa o bem da instituição, protegido pelo merecimento de cada um. 
             
Sou marinheiro e, portanto, sou corporativista. Muitas vezes a lembrança me retorna aos dias da ativa e morro de saudades. Que bom se pudesse voltar ao começo, vestir aquele uniforme novinho - até um pouco grande, ainda recordo - Jurar Bandeira, ser beijado pela minha falecida mãe... 

 Sei que, quando minha hora chegar, no último instante, verei, em velocidade desconhecida, o navio com meus amigos, minha mulher, meus filhos, singrando para sempre, indo aonde o mar encontra o céu... e, se São Pedro estiver no portaló, direi: 

- Sou marinheiro, estou embarcando. 

(Autor desconhecido. In: Língua portuguesa: leitura e produção de texto. Rio de Janeiro: Marinha do Brasil, Escola Naval, 2011. p. 6-8)

GLOSSÁRIO 

Portaló - abertura no casco de um navio, ou passagem junto à balaustrada, por onde as pessoas transitam para fora ou para dentro, e por onde se pode movimentar carga leve. 

Por que o autor afirma que “No início, eu voltava com muitos retratos, principalmente quando vinha do estrangeiro, depois, com o tempo, eram poucos, até que deixei de levar a máquina." (9°§)? 
A
O velho marinheiro perdeu o interesse pelos lugares em que o navio, comumente, atracava.
B
O nauta, cansado das frequentes viagens que fizera, desejava logo voltar para casa.
C
O marujo, já mais velho, acostumou-se com a visualização sempre das mesmas pessoas e paisagens.
D
O homem do mar, familiarizado com as viagens, incorporou os lugares visitados a sua rotina de vida.
E
O viajante compulsório deixou de se encantar com as novidades encontradas a cada viagem.