Texto I
Temas que morrem
Sinto em mim que há tantas coisas sobre o que escrever. Por que não? O que me impede? A exiguidade do tema, talvez, que faria com que este se esgotasse em uma palavra, em uma linha. Às vezes é o horror de tocar numa palavra que desencadeia milhares de outras, não desejadas, estas. No entanto, o impulso de escrever. O impulso puro - mesmo sem tema. Como se eu tivesse a tela, os pincéis e as cores - e me faltasse o grito de libertação, ou a mudez essencial que é necessária para que se digam essas coisas. As vezes a minha mudez faz com que eu procure pessoas que, sem elas saberem, me darão a palavra-chave. Mas quem? quem me obriga a escrever? O mistério é esse: ninguém, e no entanto a força me impelindo.
Eu já quis escrever o que se esgotaria em uma linha. Por exemplo, sobre a experiência de ser desorganizada, e de repente a pequena febre de organização que me toma como a de uma antiga formiga. É como se o meu inconsciente coletivo fosse o de uma formiga.
Eu também queria escrever, e seriam duas ou três linhas, sobre quando uma dor física passa. De como o corpo agradecido, ainda arfando, vê a que ponto a alma é também o corpo.
E é como se eu fosse escrever um livro sobre a sensação que tive uma vez que passei vários dias em casa muito gripada - e quando saí fraca pela primeira vez à rua, havia sol cálido e gente na rua. E de como me veio uma exclamação entre infantil e adulta: ah, como os outros são bonitos! É que eu vinha do escuro meu para o claro que também descobria que era meu, é que eu vinha de uma solidão de pessoas para o ser humano que movia pernas e braços e tinha expressões de rosto.
[...]
E às vezes, por mais absurdo, acho lícito escrever assim: nunca se inventou nada além de morrer. E me acrescento: deve ser um gozo natural, o de morrer, pois faz parte essencial da natureza humana, animal e vegetal, e também as coisas morrem. E, como se houvesse ligação com essa descoberta, vem a outra óbvia e espantosa: nunca se inventou um modo diferente de amor de corpo que é estranho e cego. Cada um vai naturalmente em direção à reinvenção da cópia, que é absolutamente original quando realmente se ama. E de novo volta o assunto morrer. E vem a ideia de que, depois de morrer, não se vai ao paraíso, morrer é que é o paraíso.
A verdade é que simplesmente me faltou o dom para a minha verdadeira vocação: a de desenhar. Porque eu poderia, sem finalidade nenhuma, desenhar e pintar um grupo de formigas andando ou paradas - e sentir-me inteiramente realizada nesse trabalho. Ou desenharia linhas e linhas, uma cruzando a outra, e me sentiria toda concreta nessas linhas que os outros talvez chamassem de abstratas.
[...]
Também escreveria sobre rir do absurdo de minha condição. E ac mesmo tempo mostrar como ela é digna, e usar a palavra digna me faz rir de novo.
Eu falaria sobre frutas e frutos. Mas como quem pintasse com palavras. Aliás, verdadeiramente, escrever não é quase sempre pintar com palavras?
Ah, estou cheia de temas que jamais abordarei. Vivo deles, no entanto.
LISPECTOR, Clarice. In: Todas as crônicas. São Paulo: Rocco, 2018.
No trecho “Cada um vai naturalmente em direção à reinvenção da copia, que é absolutamente original quando realmente se ama.” (5°§),0 uso do acento grave é obrigatório. Assinale a opção na qual a mesma obrigatoriedade ocorre em ambas as lacunas.