Texto II
Os vilões sempre viveram à sombra do herói – e não só na ficção. É difícil encontrar informações confiáveis sobre a evolução do conceito de vilão ao longo do tempo. Até nos estudos acadêmicos ou literários, eles acabam como coadjuvantes. Mas é possível pinçar algumas coisas aqui e ali.
O escritor Christopher Vogler é um dos poucos a ter se aprofundado na análise da vilania narrativa. Roteirista, ele trabalhou por décadas como consultor para estúdios de Hollywood, como Disney e Warner Bros. E, para estudar os vilões, Vogler começou pelo avesso: inspirou-se no antropólogo Joseph Campbell, criador do famoso conceito da “jornada do herói”.
Aqui vai um rápido resumo: Campbell percebeu que todos os mitos, de certa maneira, possuem elementos que se repetem, ciclos pelos quais todo protagonista passa. Eles são divididos em etapas: “o chamado do herói para aventura” (em Star Wars, é o momento em que o pedido de socorro da Princesa Leia chega até Luke Skywalker), o “encontro com um mentor” (quando Neo conhece Morfeu em Matrix), e por aí vai. Vogler selecionou nas teorias de Campbell as estruturas que ele acreditava serem mais úteis na construção de uma narrativa. O resultado foi publicado em um guia, chamado A Jornada do Escritor. Lá, Vogler descreve diferentes arquétipos que um personagem pode assumir – todos eles representam alguma faceta da psicologia humana.
Um dos arquétipos é, justamente, o da Sombra, que representa o nosso lado obscuro, nossos sentimentos reprimidos. Sua função principal é desafiar o herói. O vilão, portanto, é a sombra. Com a explosão da cultura pop, no século 20, vilões arquetípicos ganharam uma aura própria de carisma, mesmo quando eram a mais completa encarnação do mal (lembre-se do Darth Vader da trilogia original). Por quê? “Se gostamos dos vilões, é porque todos nós possuímos uma face sombria, ainda que não a expressemos”, diz Adriana Amaral, que coordena um grupo de pesquisa sobre cultura pop na Unisinos. “Nesses personagens imperfeitos, acabamos enxergando um pouco da nossa personalidade.”
Prazer, anti-herói
A indústria, que não é besta, percebeu isso, e passou a criar vilões heroicos (pense, agora, em Walter White, de Breaking Bad). Bom, se existe uma jornada do herói, deve existir uma jornada do vilão, certo? Sim e não: “Do ponto de vista do vilão, ele é o herói do seu próprio mito”, escreve Vogler. Isso chega a ser inescapável quando o protagonista é o próprio vilão. Não tem outra saída: como personagem principal, de um jeito ou de outro, ele vai acabar passando pela tal jornada. Até porque o público precisa, nesses casos, entender suas motivações, ambições e sentimentos, e como elas gradualmente moldaram a vilania dos seus atos. De alguma maneira, um vilão com jornada é um vilão justificado. Do contrário, ninguém vai comprar a história.
Além do antagonista e do vilão, portanto, as narrativas contemporâneas trazem à tona uma terceira categoria: a do anti-herói, o verdadeiro reflexo invertido do herói tradicional. O novo Coringa se enquadra nesse grupo ao dar razões e raízes à loucura do palhaço. No início dos anos 2000, a franquia Star Wars tentou fazer a mesma coisa com Vader, com três longas dedicados à história de origem de Anakin Skywalker. A própria Disney fez apostas parecidas nos últimos anos: Malévola quebra a dicotomia tradicional dos contos de fadas e dá à vilã de Bela Adormecida uma jornada própria e até heroica.
Até a Cruella, de 101 Dálmatas, vai ganhar um filme para chamar de seu em 2021. Difícil é imaginar que tipo de trauma horrendo ela vai precisar ganhar para justificar sua obsessão assassina com cachorrinhos. Talvez seja esse o grande apelo das narrativas dos anti-heróis – humanizá-los exige tanto talento narrativo que é impossível não acabar seduzido. E não tem problema nenhum com isso: pode torcer pelos vilões à vontade. Afinal, não há ninguém tão parecido com a gente quanto eles.
Revista Superinteressante - Outubro 2019 (p. 69 e 70). Edição do Kindle
Assinale a alternativa correta sobre o Texto 2.