Texto III
Ser brotinho
Ser brotinho não é viver num píncaro azulado: é muito mais! Ser brotinho é sorrir bastante dos homens e rir interminavelmente das mulheres, rir como se o ridículo, visível ou invisível, provocasse uma tosse de riso irresistível.
Ser brotinho é não usar pintura alguma, às vezes, e ficar de cara lambida, os cabelos desarrumados como se ventasse forte, o corpo todo apagado dentro de um vestido tão de propósito sem graça, mas lançando fogo pelos olhos. Ser brotinho é lançar fogo pelos olhos.
É viver a tarde inteira, em uma atitude esquemática, a contemplar o teto, só para poder contar depois que ficou a tarde inteira olhando para cima, sem pensar em nada. É passar o dia todo descalça no apartamento da amiga comendo comida de lata e cortar o dedo. [...] É também falar legal e bárbaro com um timbre tão por cima das vãs agitações humanas, uma inflexão tão certa de que tudo neste mundo passa depressa e não tem a menor importância.
Ser brotinho é poder usar óculos como se fosse enfeite, como um adjetivo para o rosto e para o espírito. É esvaziar o sentido das coisas que transbordam de sentido, mas é também dar sentido de repente ao vácuo absoluto. É aguardar com paciência e frieza o momento certo de vingar-se da má amiga. É ter a bolsa cheia de pedacinhos de papel, recados que os anacolutos tornam misteriosos, anotações criptográficas sobre o tributo da natureza feminina, uma cédula de dois reais com uma sentença hermética escrita a batom, toda uma biografia esparsa que pode ser atirada de súbito ao vento que passa. Ser brotinho é a inclinação do momento.
É telefonar muito, estendida no chão. [...] Achar muito bonito um homem muito feio; achar tão simpática uma senhora tão antipática. [...]
Ser brotinho é comparar o amigo do pai a um pincel de barba, e a gente vai ver está certo: o amigo do pai parece um pincel de barba. É sentir uma vontade doida de tomar banho de mar de noite [...]. É ficar eufórica à vista de uma cascata. Falar inglês sem saber verbos irregulares. É ter comprado na feira um vestidinho engraçado e bacanérrimo.
É ainda ser brotinho chegar em casa ensopada de chuva, úmida camélia, e dizer para a mãe que veio andando devagar para molhar-se mais. É ter saído um dia com uma rosa vermelha na mão, e todo mundo pensou com piedade que ela era uma louca varrida. É ir sempre ao cinema, mas com um jeito de quem não espera mais nada desta vida. [...] É o dom de falar sobre futebol e política como se o presente fosse passado, e vice-versa.
Ser brotinho é atravessar de ponta a ponta o salão de festa com uma indiferença mortal pelas mulheres presentes e ausentes. Ter estudado balé e desistido, apesar de tantos telefonemas de Madame Saint-Quentin. Ter trazido para casa um gato que miava de fome e ter aberto uma lata de salmão para o coitado. Mas o bichinho comeu o salmão e morreu. É ficar pasmada no escuro da varanda sem contar para ninguém a miserável traição. Amanhecer chorando, anoitecer dançando. É manter o ritmo na melodia dissonante. Usar o mais caro perfume de blusa grossa e blue jeans. Ter horror de gente morta, [...] fantasmas e baratas. Ter compaixão de um só mendigo entre todos os outros mendigos da Terra. Permanecer apaixonada a eternidade de um mês por um violinista estrangeiro de quinta ordem. [...] Tomar uma pose, ora de soneto moderno, ora de minueto, sem que se dissipe a unidade essencial. [...]
Ser brotinho é adorar. Adorar o impossível. Ser brotinho é detestar. Detestar o possível. É acordar ao meio-dia com uma cara horrível, comer somente e lentamente uma fruta meio verde, e ficar de pijama telefonando até a hora do jantar, e não jantar, e ir devorar um sanduíche americano na esquina, tão estranha é a vida sobre a Terra.
CAMPOS, Paulo Mendes. Ser brotinho. In: SANTOS, Joaquim Ferreira dos (Org.). As cem melhores crônicas brasileiras. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007, p. 91-3.
Glossário:
brotinho: jovem, especialmente do sexo feminino, no início da adolescência.
píncaro: o grau mais elevado, auge.
timbre: característica acústica de um som da fala.
vã: vazia, sem fundamento.
inflexão: determinada entonação na pronúncia de uma frase.
anacoluto: frase quebrada, sem sequência.
criptográfico: cifrado; oculto.
hermético: difícil de entender e/ou interpretar.
esparso: espalhado, solto.
dissonante: que destoa; desarmônico, discordante.
soneto: pequena composição poética composta de 14 versos.
minueto: dança da aristocracia francesa, leve, graciosa e solene.
Releia o trecho: “Permanecer apaixonada a eternidade de um mês por um violinista estrangeiro [...].” (Texto III, 8º parágrafo, linhas 35-36).
Qual dos fragmentos a seguir, retirados de obras clássicas da literatura em Língua Portuguesa, ilustra a ideia que se apresenta no trecho transcrito acima?