Questão
Colégio Militar - CM - 1º Ano
2022
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Texto III 

Ser brotinho 

Ser brotinho não é viver num píncaro azulado: é muito mais! Ser brotinho é sorrir bastante dos homens e rir interminavelmente das mulheres, rir como se o ridículo, visível ou invisível, provocasse uma tosse de riso irresistível.

Ser brotinho é não usar pintura alguma, às vezes, e ficar de cara lambida, os cabelos desarrumados como se ventasse forte, o corpo todo apagado dentro de um vestido tão de propósito sem graça, mas lançando fogo pelos olhos. Ser brotinho é lançar fogo pelos olhos.

É viver a tarde inteira, em uma atitude esquemática, a contemplar o teto, só para poder contar depois que ficou a tarde inteira olhando para cima, sem pensar em nada. É passar o dia todo descalça no apartamento da amiga comendo comida de lata e cortar o dedo. [...] É também falar legal e bárbaro com um timbre tão por cima das vãs agitações humanas, uma inflexão tão certa de que tudo neste mundo passa depressa e não tem a menor importância.

Ser brotinho é poder usar óculos como se fosse enfeite, como um adjetivo para o rosto e para o espírito. É esvaziar o sentido das coisas que transbordam de sentido, mas é também dar sentido de repente ao vácuo absoluto. É aguardar com paciência e frieza o momento certo de vingar-se da má amiga. É ter a bolsa cheia de pedacinhos de papel, recados que os anacolutos tornam misteriosos, anotações criptográficas sobre o tributo da natureza feminina, uma cédula de dois reais com uma sentença hermética escrita a batom, toda uma biografia esparsa que pode ser atirada de súbito ao vento que passa. Ser brotinho é a inclinação do momento.

É telefonar muito, estendida no chão. [...] Achar muito bonito um homem muito feio; achar tão simpática uma senhora tão antipática. [...]

Ser brotinho é comparar o amigo do pai a um pincel de barba, e a gente vai ver está certo: o amigo do pai parece um pincel de barba. É sentir uma vontade doida de tomar banho de mar de noite [...]. É ficar eufórica à vista de uma cascata. Falar inglês sem saber verbos irregulares. É ter comprado na feira um vestidinho engraçado e bacanérrimo.

É ainda ser brotinho chegar em casa ensopada de chuva, úmida camélia, e dizer para a mãe que veio andando devagar para molhar-se mais. É ter saído um dia com uma rosa vermelha na mão, e todo mundo pensou com piedade que ela era uma louca varrida. É ir sempre ao cinema, mas com um jeito de quem não espera mais nada desta vida. [...] É o dom de falar sobre futebol e política como se o presente fosse passado, e vice-versa.

Ser brotinho é atravessar de ponta a ponta o salão de festa com uma indiferença mortal pelas mulheres presentes e ausentes. Ter estudado balé e desistido, apesar de tantos telefonemas de Madame Saint-Quentin. Ter trazido para casa um gato que miava de fome e ter aberto uma lata de salmão para o coitado. Mas o bichinho comeu o salmão e morreu. É ficar pasmada no escuro da varanda sem contar para ninguém a miserável traição. Amanhecer chorando, anoitecer dançando. É manter o ritmo na melodia dissonante. Usar o mais caro perfume de blusa grossa e blue jeans. Ter horror de gente morta, [...] fantasmas e baratas. Ter compaixão de um só mendigo entre todos os outros mendigos da Terra. Permanecer apaixonada a eternidade de um mês por um violinista estrangeiro de quinta ordem. [...] Tomar uma pose, ora de soneto moderno, ora de minueto, sem que se dissipe a unidade essencial. [...]

Ser brotinho é adorar. Adorar o impossível. Ser brotinho é detestar. Detestar o possível. É acordar ao meio-dia com uma cara horrível, comer somente e lentamente uma fruta meio verde, e ficar de pijama telefonando até a hora do jantar, e não jantar, e ir devorar um sanduíche americano na esquina, tão estranha é a vida sobre a Terra.

CAMPOS, Paulo Mendes. Ser brotinho. In: SANTOS, Joaquim Ferreira dos (Org.). As cem melhores crônicas brasileiras. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007, p. 91-3.

Glossário: 

brotinho: jovem, especialmente do sexo feminino, no início da adolescência.  

píncaro: o grau mais elevado, auge.  

timbre: característica acústica de um som da fala. 

vã: vazia, sem fundamento.  

inflexão: determinada entonação na pronúncia de uma frase.  

anacoluto: frase quebrada, sem sequência. 

criptográfico: cifrado; oculto.  

hermético: difícil de entender e/ou interpretar.  

esparso: espalhado, solto.  

dissonante: que destoa; desarmônico, discordante. 

soneto: pequena composição poética composta de 14 versos.  

minueto: dança da aristocracia francesa, leve, graciosa e solene. 

Releia o trecho: “Permanecer apaixonada a eternidade de um mês por um violinista estrangeiro [...].” (Texto III, 8º parágrafo, linhas 35-36).  

Qual dos fragmentos a seguir, retirados de obras clássicas da literatura em Língua Portuguesa, ilustra a ideia que se apresenta no trecho transcrito acima? 
A
“Amor é fogo que arde sem se ver 

É ferida que dói e não se sente 

[...].” 

Luís Vaz de Camões – Soneto (1595) 
B
“Em todas as outras coisas, o deixar de ser é sinal de que já foram; no amor o deixar de ser é sinal de nunca ter sido.” 

Padre Antônio Vieira – Sermão do Mandato (1643) 
C
“Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de réis.” 

Machado de Assis – Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881) 
D
“De tudo, ao meu amor serei atento 

Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto, 

Que mesmo em face do maior encanto 

Dele se encante mais meu pensamento.” 

Vinícius de Moraes – Soneto da Fidelidade (1939)
E
“Amar o perdido 

Deixa confundido  

Este coração.” 

Carlos Drummond de Andrade – Memória (1991)