Texto II
Feliz Aniversário
[...] A aniversariante* olhava o bolo apagado, grande e seco.
— Parta o bolo, vovó! disse a mãe dos quatro filhos, é ela quem deve partir! Assegurou incerta a todos, com ar íntimo e intrigante. E, como todos aprovassem satisfeitos e curiosos, ela se tornou de repente impetuosa: — parta o bolo, vovó!
E de súbito a velha pegou na faca. E sem hesitação, como se hesitando um momento ela toda caísse para a frente, deu a primeira talhada com punho de assassina.
— Que força, segredou a nora de Ipanema, e não se sabia se estava escandalizada ou agradavelmente surpreendida. Estava um pouco horrorizada.
— Um ano atrás ela ainda era capaz de subir essas escadas com mais fôlego do que eu, disse Zilda amarga.
Dada a primeira talhada, como se a primeira pá de terra tivesse sido lançada, todos se aproximaram de prato na mão, insinuando-se em fingidas acotoveladas de animação, cada um para a sua pazinha. [...]
E quando foram ver, não é que a aniversariante já estava devorando o seu último bocado?
E por assim dizer a festa estava terminada. [...]
Na cabeceira da mesa, a toalha manchada de coca cola, o bolo desabado, ela era a mãe. A aniversariante piscou.
Eles se mexiam agitados, rindo, a sua família. E ela era a mãe de todos. E se de repente não se ergueu, como um morto se levanta devagar e obriga mudez e terror aos vivos, a aniversariante ficou mais dura na cadeira, e mais alta. Ela era a mãe de todos. E como a presilha a sufocasse, ela era a mãe de todos e, impotente à cadeira, desprezava-os. E olhava- os piscando. Todos aqueles seus filhos e netos e bisnetos que não passavam de carne de seu joelho, pensou de repente como se cuspisse. Rodrigo, o neto de sete anos, era o único a ser a carne de seu coração. Rodrigo, com aquela carinha dura, viril e despenteada, cadê Rodrigo? Rodrigo com olhar sonolento e intumescido naquela cabecinha ardente, confusa. Aquele seria um homem. Mas, piscando, ela olhava os outros, a aniversariante. Oh o desprezo pela vida que falhava. Como?! Como tendo sido tão forte pudera dar à luz aqueles seres opacos, com braços moles e rostos ansiosos? Ela, a forte, que casara em hora e tempo devidos com um bom homem a quem, obediente e independente, ela respeitara; a quem respeitara e que lhe fizera filhos e lhe pagara os partos e lhe honrara os resguardos. O tronco fora bom. Mas dera aqueles azedos e infelizes frutos, sem capacidade sequer para uma boa alegria. Como pudera ela dar à luz aqueles seres risonhos, fracos, sem austeridade? O rancor roncava no seu peito vazio. [...] Olhou-os com sua cólera de velha. Pareciam ratos se acotovelando, a sua família. Incoercível, virou a cabeça e com força insuspeita cuspiu no chão.
(Clarice Lispector. In Laços de família. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1995. Fragmento.)
* aniversariante cujo nome atribuído no conto em sua íntegra é Anita.
Ao ser solicitada para que cortasse o bolo, a aniversariante tem uma atitude ______________ diante da qual o narrador utiliza a expressão “com punho de assassina”. Indique a palavra/expressão que completa corretamente a afirmativa anterior.