Texto I
O Marajá
A família toda ria de dona Morgadinha e dizia que ela estava sempre esperando a visita do Marajá de Jaipur. Dona Morgadinha não podia ver uma coisa fora do lugar, uma ponta de poeira em seus móveis ou uma mancha em seus vidros e cristais. Gemia baixinho quando alguém esquecia um sapato no corredor, uma toalha no quarto ou - ai, ai, ai - uma almofada torta no sofá da sala. Baixinha, resoluta, percorria a casa com uma flanela na mão, o olho vivo contra qualquer incursão do pó, da cinza, do inimigo nos seus domínios.
Dona Morgadinha era uma alma simples. Não lia jornal, não lia nada.
Achava que jornal sujava os dedos e livro juntava mofo e bichos. O marido de dona Morgadinha, que ela amava com devoção apesar do seu hábito de limpar a orelha com uma tampa de caneta Bic, estabelecera um limite para sua compulsão de limpeza. Ela não podia entrar na sua biblioteca. Sua jurisdição acabava na porta. Ali dentro só ele podia limpar, e nunca limpava.
E, nas raras vezes em que dona Morgadinha chegava à porta do escritório proibido para falar com o marido, este fazia questão de desafiá-la. Botava os pés em cima dos móveis. Atirava os sapatos longe. Uma vez chegara a tirar uma meia e jogar em cima da lâmpada só para ver a cara da mulher. Sacudia a ponta do charuto sobre um cinzeiro cheio e errava deliberadamente o alvo. Dona Morgadinha então fechava os olhos e, incapaz de se controlar, lustrava com a sua flanela o trinco da porta.
O marido de dona Morgadinha contava, entre divertido e horrorizado, da vez que levara a mulher a uma recepção diplomática.
- Percorremos a fila de recepção, e quando vi a Morgadinha estava sendo apresentada ao embaixador. O embaixador se curvou, fez uma reverência, e de repente a Morgadinha levou a mão e tirou um fio de cabelo da lapela do embaixador!
- Não pude resistir - explicava dona Morgadinha, séria, entre as risadas dos outros.
- E ainda deu uma espanada, com a mão, no seu ombro.
- Caspa - suspirava dona Morgadinha, desiludida com o corpo diplomático.
Quis o destino que os filhos de dona Morgadinha puxassem pelo pai no relaxamento e na irreverência. Todos os três.
- Meu filho, aí não é lugar de deixar os livros da escola.
- Qual é, mãe? Está esperando o Marajá?
- Minha filha, a sala não é lugar de cortar as unhas.
- Ih, hoje é dia do Marajá chegar.
- Oscar, na mesa?!
- Quando o Marajá vier almoçar, eu prometo que não faço isto. Certa manhã bateram à porta. Dona Morgadinha, que comandava a faxina diária da casa com severidade militar, fez sinal para as empregadas de que ela mesma iria abrir. Na porta estava um homem moreno, de terno, gravata - e turbante!
Dona Morgadinha, que uma vez brigara com o carteiro porque a sua calça estava sem friso, olhou o homem de alto a baixo e não encontrou o que dizer.
- Dona Morgadinha?
- Sim.
- Meu amo manda o seu cartão e pede permissão para vir visitá-la às cinco.
Dona Morgadinha olhou o cartão que o homem lhe entregara. Ali estava, com todas as letras douradas, "Marajá de Jaipur". Não conseguiu falar. Fez que sim com a cabeça, desconcertada. O homem fez uma mesura e desapareceu antes que dona Morgadinha recuperasse a fala.
As empregadas receberam ordens de recomeçar a faxina, do princípio. Dona Morgadinha anunciou para a família que naquele dia não haveria almoço.
Não queria cheiro de comida na casa. E era bom todos saírem para a rua até a noite, para não haver perigo de deslocarem as almofadas. Pai e filhos se entreolharam e concordaram:
- O Marajá vem hoje.
Dona Morgadinha apenas sorriu. E estava com o mesmo sorriso quando o marido e os filhos chegaram em casa à noite, depois de comerem um cheeseburger na esquina, fazendo bastante barulho e manchando a roupa.
(Luis Fernando Verissimo. Comédias para se ler na escola.)
O trecho destacado em “que ela amava com devoção apesar do seu hábito de limpar a orelha com uma tampa de caneta Bic” pode ser reescrita, sem perda sintática ou semântica, por qual oração?