Texto 2
O colocador de pronomes (Monteiro Lobato)
Aldrovando Cantagalo veio ao mundo em virtude dum erro de gramática.
Durante sessenta anos de vida terrena pererecou como um peru em cima da gramática.
E morreu, afinal, vítima dum novo erro de gramática.
Martir da gramática, fique este documento da sua vida como pedra angular para uma futura e bem merecida canonização. (...)
Escrevera nesse bilhetinho, entretanto, apenas quatro palavras, afora pontos exclamativos e reticências:
Anjo adorado!
Amo-lhe!
Para abrir o jogo bastava esse movimento de peão. Ora, aconteceu que o pai do anjo apanhou o bilhetinho celestial e, depois de três dias de sobrecenho carregado, mandou chamá-lo à sua presença, com disfarce de pretexto –
para umas certidõesinhas, explicou. (...)
– A família Triburtino de Mendonça é a mais honrada desta terra, e eu, seu chefe natural, não permitirei nunca
– nunca, ouviu? – que contra ela se cometa o menor deslize.
Parou. Abriu uma gaveta. Tirou de dentro o bilhetinho cor de rosa, desdobrou-o
– É sua esta peça de flagrante delito?
O escrevente, a tremer, balbuciou medrosa confirmação.
– Muito bem! Continuou o coronel em tom mais sereno. Ama, então, minha filha e tem a audácia de o declarar... Pois agora...
O escrevente, por instinto, ergueu o braço para defender a cabeça e relanceou os olhos para a rua, sondando uma retirada estratégica.
– ... é casar! Concluiu de improviso o vingativo pai.
O escrevente ressuscitou. Abriu os olhos e a boca, num pasmo. Depois, tornando a si, comoveu-se e com lágrimas nos olhos disse, gaguejante:
– Beijo-lhe as mãos, coronel! Nunca imaginei tanta generosidade em peito humano! Agora vejo com que injustiça o julgam aí fora!...
Velhacamente o velho cortou-lhe o fio das expansões.
– Nada de frases, moço, vamos ao que serve: declaro-o solenemente noivo de minha filha!
E voltando-se para dentro, gritou:
– Do Carmo! Venha abraçar o teu noivo!
O escrevente piscou seis vezes e, enchendo-se de coragem, corrigiu o erro.
– Laurinha, quer o coronel dizer...
O velho fechou de novo a carranca.
– Sei onde trago o nariz, moço. Vassuncê mandou este bilhete à Laurinha dizendo que ama-“lhe”. Se amasse a ela deveria dezer amo-“te”. Dizendo “amo-lhe” declara que ama a uma terceira pessoa, a qual não pode ser senão a Maria do Carmo. Salvo se declara amor à minha mulher...
A leitura atenta do texto permite a compreensão de que