Questão
Escola Naval - EN
2024
Texto-1-DONO-LIVRO58640d8b620
Texto 1 

O DONO DO LIVRO 

Martha Medeiros 

Li outro dia um fato real narrado pelo escritor moçambicano Mia Couto. Ele disse que certa vez chegou em casa no fim do dia, já havia anoitecido, quando um garoto humilde de 16 anos o esperava sentado no muro. O garoto estava com um dos braços para trás, o que perturbou o escritor, que imaginou que pudesse ser assaltado.

Mas logo o menino mostrou o que tinha em mãos: um livro do próprio Mia Couto.

Esse livro é seu? perguntou o menino. Sim, respondeu o escritor. Vim devolver. O garoto explicou que horas antes estava na rua quando viu uma moça com aquele livro nas mãos, cuja capa trazia a foto do autor. 

O garoto reconheceu Mia Couto pelas fotos que já havia visto em jornais. Então perguntou para a moça: Esse livro é do Mia Couto?. Ela respondeu: É. E o garoto mais que ligeiro tirou o livro das mãos delta e correu para a casa do escritor para fazer a boa ação de devolver a obra ao verdadeiro dono. 

Uma história assim pode acontecer em qualquer país habitado por pessoas que ainda não estejam familiarizadas com os livros - aqui no Brasil, inclusive. De quem é o. livro? À resposta não é a mesma de quando se pergunta: “Quem escreveu o livro?”. 

O autor é quem escreve, mas o livro é de quem lê, e isso de uma forma muito mais abrangente do que o conceito de propriedade privada - comprei, é meu. O livro é de quem lê mesmo quando foi retirado de uma biblioteca, mesmo que seja emprestado, mesmo que tenha sido encontrado num banco de praça. 

O livro é de quem tem acesso às suas páginas e através delas consegue imaginar os personagens, os cenários, a voz e o jeito com que se movimentam. São do leitor as sensações provocadas, a tristeza, a euforia, o medo, o espanto, tudo o que é transmitido pelo autor, mas que reflete em quem lê de uma forma muito pessoal. É do leitor o prazer. É do leitor a identificação. É do leitor o aprendizado. É do leitor o livro. 

Dias atrás gravei um comercial de rádio em prol do Instituto Estadual do Livro em que falo aos leitores exatamente isso: os meus livros são os seus livros. E são, de fato. Não existe livro sem leitor. Não existe. É um objeto fantasma que não serve para nada. 

Aquele garoto de Moçambique não vê assim. Para ele, o livro é de quem traz o nome estampado na capa, como se isso sinalizasse o direito de posse. Não tem ideia de como se dá o processo todo, possivelmente nunca entrou numa livraria, nem sabe o que é tiragem. 

Mas, em seu desengano, teve a gentileza de tentar colocar as coisas em seu devido lugar, mesmo que para isso tenha roubado o livro de uma garota sem perceber. 

Ela era a dona do livro. E deve ter ficado estupefata. Um fã do Mia Couto afanou seu exemplar. Não levou o celular, a carteira, só quis o livro. Um danado de um amante da literatura, deve ter pensado ela. Assim são as histórias escritas também pela vida, interpretadas a seu modo por cada dono.

Revista O Globo, 25 de novembro de 2012. (Texto adaptado) 

Segundo Martha Medeiros, no Texto 1, “O autor é quem escreve, mas o livro é de quem lê, e isso de uma forma muito mais abrangente do que o conceito de propriedade privada [...]” (6º§). 

Assinale a opção em que o escritor Mia Couto (poeta e ficcionista moçambicano) explica, implicitamente, a ideia de Martha Medeiros destacada acima. 
A
“O segredo do escritor é anterior à escrita. Está na vida, na forma como ele está disponível a deixar-se tomar pelos pequenos detalhes do cotidiano.”
B
“O livro e o escritor não mudam a realidade, mas convidam, induzem o desejo de mudar essa realidade, de forma a saber que o sonho é uma outra maneira de escapar a esse aprisionamento.”
C
“[...] quando ficar sem mim/ não terei escrito/ senão por vós/ irmãos de sonho/ [...] hei de inventar/ um verso que vos faça justiça.”
D
“A ciência vive de inquietação, do desejo de conhecer para além dos limites. A escrita é uma falsa quietude, a capacidade de sentir sem limites. Ambas resultam da recusa das fronteiras, ambas são um passo sonhado para lá do horizonte.” 
E
“O leitor constrói a voz de quem conta a história, e eu preciso esclarecer que quem está ali naquele momento não é a pessoa que escreveu.”