TEXTO I
UM CONTO DA PESTE
A caça ao rato que dividiu os moradores de um condomínio no Rio
Consuelo Dieguez
No Decameron, escrito por Giovanni Boccaccio por volta de 13h50, dez jovens se refugiam num castelo próximo à Florença, a fim de escapar da peste negra que assola a Europa. Para passar o tempo, eles se entretêm contando histórias.
Sete séculos depois, o mundo voltou a ser atacado por nova praga, a Covid-19, que, como a peste negra, surgiu na China. No Rio de Janeiro, não num castelo, mas num prédio de classe média alta no bairro de São Conrado, os moradores, sem se dar conta, também contam histórias - ou criam casos - no grupo de whatssapp do condomínio, talvez como forma de enfrentar o confinamento.
No Decameron carioca, a história começou às 21 h57 de uma terça-feira de março, quando uma moradora enviou a seguinte mensagem no grupo até então dedicado apenas a questões administrativas: "Boa noite. Tenho o hábito de subir pela escada, à noite, quando saio da academia. Quem ouviu um grito, minutos atrás, foi minha reação ao me deparar com uma ratazana bem-criada, subindo em direção ao terceiro andar. Nunca tinha encontrado ratos aqui em cima."
O atento síndico, um médico aposentado, prontamente respondeu: "Nunca tinha visto. Vamos combater." Um terceiro morador perguntou: "Era rato ou gambá?" A moradora que tinha visto o rato assegurou: "Era uma ratazana, com certeza." O que levou outra pessoa a se manifestar: "Que medo." Tentando dar certo glamour à situação, um condômino lembrou: "Fiquem tranquilos, Londres e Paris são as cidades com as maiores populações de ratos."
( ... )
Às 23h20, o síndico tranquilizou os moradores: "Colocaremos armadilhas para os ratos."
No dia seguinte, às 17h53, o síndico celebrou: "Gostaria de informar que o rato ficou preso nas escadas. Não conseguiu sair por causa das portas corta-fogo. Montamos uma brigada de caça com sete homens armados e equipados, e ele foi a óbito às 13h22. Não vou mandar fotos para preservar os nossos condôminos."
A confusão estava armada. Emojis de aplausos e de insatisfação revelaram a polarização em torno do tema. Uma moradora mais sensível enviou um emoji com carinha de triste. Seu marido, um advogado, protestou: "Morto sem fazer mal a ninguém." O síndico reagiu: "Apavorando as mulheres e é um transmissor de doenças." O advogado retrucou: "Ser humano transmite mais. E muitos apavoram as mulheres, mas não entrarei nesse mérito."
Um morador, indignado, se colocou ao lado da administração: "Então vamos deixar os ratos invadirem nosso condomínio e transmitirem doenças? Não posso acreditar nisso. Rato é praga." O síndico reforçou: "Ratos transmitem 35 tipos de doença, entre elas a peste bubônica." Inconformado, o advogado respondeu, irônico: "É isso aí. Só existem essas opções pensáveis, matar ou deixar invadir." O síndico não perdeu tempo: "Que eu saiba, quando aparecem ratos, não há outra opção." Uma vizinha sensível escreveu, às 18h41: "Não discordamos, apenas não é natural pra gente 'matar' um animal e ficar feliz."
( ... )
Menos de um mês depois da confusão, abelhas invadiram alguns apartamentos. O síndico informou, pelo grupo de Whatssapp, que se tratava de abelhas jataí, "inofensivas". Um morador contestou, assegurando que eram africanas. O síndico perguntou se ele vira o passaporte das abelhas. O outro respondeu: "Ilegais. Invadiram o Brasil." E uma nova polêmica mobilizou o grupo. Mas esse já é outro conto.
(Fonte: https://piaui.folha.uol.com.br/materia - acessado em 25/07/21 - adaptado)
"Quem ouviu um grito, minutos atrás, foi minha reação ao me deparar com uma ratazana bem-criada subindo em direção ao terceiro andar."
Caso substituíssemos o verbo deparar-se pelo verbo encontrar, a nova regência verbal na oração sublinhada será: