Questão
Academia da Força Aérea - AFA
2002
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TEXTO I

Quem são nossos Ídolos?

Eu estava na França nos idos dos anos 80. Ligando a televisão,

ouvi por acaso uma entrevista com um jovem piloto de fórmula 1. Foi lhe perguntado em quem se inspirava como piloto iniciante. A resposta foi pronta: Ayrton Senna. O curioso é que nessa época Senna não havia ganho uma só corrida importante. Mas bastou ver o piloto brasileiro se preparando para uma corrida; era o primeiro a chegar no treino, o único a sempre fazer a pista a pé, o que mais trocava idéias com os mecânicos e o último a ir embora. Em outras palavras, sua dedicação, tenacidade, atenção aos detalhes eram tão descomunais que, aliadas a seu talento, teriam de levar ao sucesso.

Por que tal comentário teria hoje alguma importância?

Cada época tem seus Ídolos, pois eles são a tradução de anseios, esperanças, sonhos e identidade cultural daquele momento. Mas, ao mesmo tempo, reforçam e ajudam a materializar esses modelos de pensar e agir.

Já faz muito tempo. Heleno de Freitas foi um grande Idolo do futebol. Segundo consta, jactava-se de tomar uma cachacinha antes do jogo, para aumentar a criatividade. Entrava em campo exibindo seu bigodinho e, após o gol. puxava o pente e corrigia o penteado. O ídolo era a genialidade pura do futebol-arte.

Mais tarde. Garrincha era a expressão do povo, com sua alegria e ingenuidade. Era o jogador cujo estilo brotava naturalmente. Era a espontaneidade, como pessoa e como jogo, e era facilmente amado pelos brasileiros, pois materializava as virtudes da criação genial.

Para o jogador "cavador", cabia não mais do que um prêmio de consolação. Até que veio Pelé. Genial, sim. Mas disciplinado, dedicado e totalmente comprometido a usar todas as energias para levar a cabo sua tarefa. E de atleta completo e brilhante passou a ser um cidadão exemplar.

É bem adiante que vem Ayrton Senna. Tinha talento, sem dúvida. Mas tinha mais do que isso. Tinha a obsessão da disciplina, do detalhe e da dedicação total e completa. Era o talento a serviço do método e da pre meditaçâo, que são muito mais críticos nesse desporto.
 
Há mais do que uma coincidência nessa evolução. Nossa escolha de ídolos evoluiu porque evoluímos. Nossos ídolos do passado refletiam nossa imaturidade. Era a época de Macunaíma. Era a apologia da genialidade pura. Só talento, pois esforço é careta. Admirávamos quem era talentoso por graça de Deus e desdenhávamos o sucesso originado do esforço. Amadurecemos, Cresceu o peso da razão nos ídolos. A emoção ingênua recuou. Hoje criamos espaço para os ídolos cujo êxito é, em grande medida, resultado da dedicação e da disciplina — como Pelé e Senna.

Mas há o outro lado da equação, vital para a nossa juventude Necessitamos de modelos que mostrem o caminho do sucesso por via do esforço e da dedicação. Tais ídolos trazem um ideário mais disciplinado e produtivo.

Nossa educação ainda valoriza o aluno genial, que não estuda — ou que, paradoxalmente, se sente na obrigação de estudar escondido e jactar-se de não fazê-lo. O cê-dê-efe é diminuído, menosprezado, é urn pobre-diabo que só obtém bons resultados porque se mata de tanto estudar. A vitória comemorada é a que deriva da improvisação, do golpe de mestre. E, nos casos mais tristes, até competência na cola é motivo de orgulho. 

Parte do sucesso da educação japonesa e dos Tigres Asiáticos provém da crença de que todos podem obter bons resultados por via do esforço e da dedicação. Pelo ideário desses países, pobres e ricos podem ter sucesso, é só dar duro.

O êxito em nossa educação passa por uma evolução semelhante à que aconteceu nos desportos — da emoção para a razão. É preciso que o sucesso escolar passe a ser visto como resultado da disciplina, do paroxismo de dedicação, da premeditação e do método na consecução de objetivos.

A valorização da genialidade em estado puro é o atraso, nos desportos e na educação. O modelo para nossos estudantes deverá ser Ayrton Senna, o supremo cê-dê-efe de nosso esporte. Se em seu modelo se inspirarem, vejo bons augúrios para nossa educação.

(Cláudio de Moura e Castro — Ponto de Vista.Revista Veja. 6 de junho, 2001. Edição 1703)

Glossário

apologia: louvor
augúrlo: prognóstico, presságio
desdenhar: desprezar
descomunal: colossal, extraordinário
Jactar-se: vangloriar-se
obsessão: idéia fixa
paradoxal: idéia ou atitude contrária á opinião comum
paroxismo: auge, apogeu premeditar: 
tenacidade: planejar persistência, constância

TEXTO II

No fundo do mato-virgem nasceu Macunaíma, herói de nossa gente. Era preto retinto e filho do medo da noite. Houve um momento em que o silêncio foi tão grande escutando o murmurejo do Uraricoera, que a índia tapanhumas pariu uma criança feia. Essa criança é que chamaram de Macunaíma.

Já na meninice fez coisas de sarapantar. De primeiro passou mais de seis anos não falando. Si o incitavam a falar exclamava: — Ai! que preguiçai...

e não dizia mais nada. Ficava no canto da maloca, trepado no jirau de paxiúba, espiando o trabalho dos outros e principalmente os dois manos que tinha, Maanape já velhinho e Jiguê na força de homem. O divertimento dele era decepar a cabeça de saúva. Vivia deitado mas si punha os olhos em dinheiro, Macunaíma dandava pra ganhar vintém. E também espertava quando a família Ia tomar banho no rio, todos juntos e nus. Passava o tempo do banho dando mergulho, e as mulheres soltavam gritos gozados por causa dos guaiamuns diz- que habitando a água-doce por lá. No mucambo si alguma cunhatã se aproximava dele pra fazer festinha, Macunaíma punha a mão nas graças dela, cunhatã se afastava. Nos machos guspia na cara. Porém respeitava os velhos e freqüentava com aplicação a murua a poracê o torê o bacorocô a cucuicogue, todas essas danças religiosas da tribo. 

Quando era pra dormir trepava no macuru pequeninho sempre se esquecendo de mijar. Como a rede da mãe estava por debaixo do berço, o herói mijava quente na velha, espantando os mosquitos bem. Então adormecia sonhando palavras feias, imoralidades estrambólicas e dava patadas no ar.

Nas conversas das mulheres no pino do dia o assunto eram sempre as peraltagens do herói. As mulheres se riam muito simpatizadas, falando que "espinho que pinica, de pequeno já traz ponta", e numa pajelança Rei Nagô fez um discurso e avisou que o herói era inteligente.

(...)

(ANDRADE, Mário de. Macunaíma: O herói sem nenhum caráter. São Paulo, Ed. Círculo do Livro, 1991. Cap. I)

Glossário

Macunaíma: figura lendária da mitologia indígena, recolhida por Mário de Andrade no livro Vom Roraima zum Onnoco, de Theodor Koch-Grünberg, segundo o qual o nome Macunaíma é composto de macku (=mau) e o sufixo aumentativo -/ma (= grande).

tapanhumas: nome de origem tupi designativo dos negros filhos da África que moravam no Brasil; tribo lendária de índios brasileiros, com características de negros, sarapantar: o mesmo que espantar.

JIrau de paxiúba: estrado de varas (jirau) feito com fibras de palmeira (paxiúba).

guaiamuns (ou guaimuns): espécie de caranguejo, cunhatã: moça, adolescente.

macuru: na Amazônia, balanço feito de pano e cipó, usado como berço.

Assinale o trecho que caracteriza MELHOR a sagacidade de Macunaima.
A
'(...) o herói mijava quente na velha (...)"
B
"(...) sonhando palavras-feias, imoralidades estrambólicas."
C
"Já na meninice fez coisas de sarapantar."
D
"Porém respeitava os velhos e freqüentava com aplicação a murua (...)"