TEXTO II
SOBRE A “BALEIA AZUL” E AS TECNOLOGIAS DA MORTE
O suicídio entre os jovens não é um fenômeno novo, mas a discussão ganha impulso diante de um jogo que se desdobra nas malhas tecnológicas atuais. Jovens precisam desenhar utopicamente o horizonte dos seus desejos. Quando as máquinas exercem essa tarefa por nós, nos esvaziamos de fantasias.
O fenômeno macabro “Baleia Azul” ganha destaque, com justificada razão, entre os assuntos que vêm preocupando o mundo (guerra na Síria, eleições na França, guerra nuclear da Coreia do Norte, as já conhecidas investidas de Donald Trump). O fenômeno é dinamizado pela execução gradativa de 50 desafios que vão desde a automutilação até o suicídio.[...]
No Brasil, algumas ocorrências assustam: uma menina de 16 anos morreu no Mato Grosso após se afogar em uma lagoa com cortes nos braços, indício de que participava do jogo da “Baleia Azul”. Em João Pessoa, estudantes participam de grupos de automutilação e morte. Em 2015, um garoto de 13 anos se enforcou na casa do pai, no litoral sul da capital paulista, em condições semelhantes às vítimas do jogo.
Inescapavelmente, esses acontecimentos nos fazem pensar sobre um fenômeno que certamente não é novo (suicídio entre a população jovem), mas que ganha impulso renovado com um jogo que se desdobra nas malhas da tecnologia.
São múltiplos os portões de acesso que nos levam a alguns endereços de resposta (como diria Kafka, as portas são inumeráveis, a saída é uma só, mas as possibilidades de saída são tão numerosas quanto às portas). [...]
Engorda o escopo das justificativas o argumento, segundo o qual, são eles (adolescentes e jovens) que passam mais tempo expostos à internet e às redes sociais, o que os torna alvos fáceis dos serial killers virtuais, denominação atribuída aos desafiantes.
Mas, pera! O que dizer dos desafios que nós adultos aceitamos, sem resistência, no tecnocosmos, ainda que a serviço do bem comum?
A propósito, em novembro de 2015, escrevi um artigo cujo fragmento se aplica a essa questão: Não é mais novidade que a Internet, com as redes sociais na dianteira, tornou-se quase um habitat natural de campanhas e desafios que convocam temporariamente o engajamento das pessoas.
[...]
Adicionalmente, podemos dizer que não existem distâncias telescópicas entre o tempo dispensado por jovens e adultos na internet. Uma vez que a gestão da vida passa pelos espaços digitais, mergulhamos profunda e demoradamente no oceano da cibercultura.
Sem desconsiderar completamente esses dois fatores, a saber, que os adolescentes e jovens são influenciados mais facilmente e hoje passam mais tempo frente às telas, suponho ser necessário dar mais algumas voltas no parafuso para se chegar a um ponto em que podemos avistar algo de “novo” ou “específico” neste tipo de jogo.
[...]
Subversão da lógica dos desejos
Nessa atmosfera de excesso de positividade, as máquinas – normalmente um smartphone – devem oferecer tudo que queremos e desejamos.
Comentei em outro artigo, por ocasião da febre do Pokemon Go (curiosamente outro jogo), que os aparelhos nunca desligam porque precisam oferecer não somente o que desejamos, mas também precisam dizer o que desejamos, demonstrando possuir um saber sobre o nosso desejo.
Talvez resida aí, nesse esquadrinhamento dos desejos, umas das chaves explicativas para a adesão ao jogo da morte. Jovens precisam de desenhar topicamente o horizonte dos seus desejos (...).
Quando as máquinas exercem essa tarefa por nós, nos esvaziamos de fantasias, recurso que sustenta o desejo, e um sujeito esvaziado de fantasia, ensina a psicanálise, é um sujeito débil para a produção de laço social. (...)
Sabe-se que as tecnologias (...) vêm alimentando uma plataforma de vida assaz pesada que limita, ou até mesmo interdita, os voos das asas da nossa imaginação para outros lugares não pontuados pelas regras do super-rendimento e da hiperprodutividade.
(...) É preciso desejar para além do que as máquinas nos oferecem (Netflix, Ifood, OpenRice, JustEat, Uber;...). Na impossibilidade de querermos algo para além do que as máquinas acreditam que queremos, só nos resta aceitar, ceder e executar, achando que temos o controle e somos empreendedores de nossa própria existência. “Sabe nada inocente”, já diria o “filósofo” compadre Washington!
Provavelmente, esses jovens estão se dando conta dessas limitações e ousam responder a pergunta que habita as páginas do famoso livro A insustentável leveza do ser: “Então, o que escolher? O peso ou a leveza?”.
Infelizmente, a resposta que está sendo dada pelos jogadores do “Baleia Azul” sucumbe à voracidade da máquina, a grande sequestradora dos desejos nestes tempos bicudos.
Por Rosane Borges — publicado 27/04/2017, 14h36, última modificação 20/07/2017, 12h53. Texto adaptado para esta prova. Retirado de: <https://www.cartacapital.com.br/sociedade/sobre-a-201cbaleiaazul201d-e-as-tecnologias-da-morte>
Glossário:
Kafka: Franz Kafka foi um escritor de língua alemã, autor de romances e contos, considerado pelos críticos como um dos escritores mais influentes do século XX.
Compadre Washington: Integrante do grupo de axé É o Tchan.
Serial killers: Tipos de criminosos de perfil psicopatológico que cometem crimes com uma certa frequência, geralmente seguindo um mesmo modo e, às vezes, deixando sua "assinatura".
Releia algumas orações retiradas do texto II, acompanhadas das justificativas da ocorrência ou não da crase. Marque a alternativa cuja explicação está INDEVIDA.