Questão
Colégio Militar - CM - 1º Ano
2019
VER HISTÓRICO DE RESPOSTAS
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TEXTO II

PEQUENOS DELITOS

Walcyr Carrasco

Compras do mês. Percorro as prateleiras do supermercado olhando gulosamente tudo aquilo que é bom mas engorda. Um senhor magro e grisalho para diante dos iogurtes. Olha em torno, cautelosamente. Agarra uma garrafinha sabor morango, abre e vira na boca, bem depressa. Esconde a embalagem. Disfarço, mas sigo o homem. Podem me chamar de abelhudo. Sou. Minha desculpa é que só tento entender o comportamento humano para escrever depois. Dali a pouco o homem pega um pacote de bolachas. Abre. Come algumas. A sobremesa? Na banca de frutas. Uvas itália tiradas do cacho. Um pêssego pequeno. Devora. Esconde o caroço no bolso. Nem sei como consegue fazer a digestão, tal a rapidez. Não, não se trata de nenhum MSS — Movimento dos Sem-Supermercado ou coisa que o valha. É um senhor com jeito de vovozinho e trajes de classe média. Termina as compras de barriga cheia e com expressão de vitória.

— Faço de tudo para não praticar pequenos delitos — conta uma amiga.

— É uma responsabilidade pessoal.

Culposamente, lembro de quando vou comprar fruta seca. Adoro uva passa. Com a desculpa de experimentar, pego uma. Duas. Três. Trezentas! Outra amiga é absolutamente contra camelôs. Diz que emporcalham a cidade. Há uma semana chegou com um brinquedo para os filhos.

— Paguei baratinho — contou animada.

— Era de uma banquinha do centro da cidade. Espantei-me.

— Você não é contra?

— Sou contra, mas não sou burra!

Pode? Hoje em dia se fala muito em ética. Mas, quando podem dar o golpe nas pequenas coisas, muita gente se sente orgulhosa. Conheço uma livraria, em Pinheiros, onde sempre se aceita devolução. Recentemente uma senhora levou seu exemplar. A gerente não reconheceu o livro. A cliente teimou. Ela verificou todas as notas. Simplesmente o título não havia sido negociado. Insistiu:

— Eu troco, desde que a senhora me diga a verdade. Não é daqui, é?

A mulher reconheceu: havia comprado o exemplar há tempos, em outro lugar. Mesmo assim, aceitou a troca e saiu satisfeitíssima com um livro novo. Outra cliente levou o livro de atividades do filho, acompanhada pela criança. Trocou. Dias depois se descobriu que os questionários internos estavam preenchidos a mão. Era golpe.

— Que exemplo essa mulher dá ao filho? — admira-se a moça.

E quando o troco vem errado? Confesso que a minha primeira reação é de alegria! De repente, tenho mais dinheiro do que pensava. Em seguida lembro que a diferença será paga pelo caixa. Devolvo. Já vi gente feliz da vida porque o dono da loja fez confusão nos preços. Outra coisa que odeio é emprestar e não receber. Há uma predisposição, para não pagar pequenas dívidas. Mesmo quem empresta fica sem jeito.

— São só cinco reais... não faço questão.

Como se fosse feio receber o que é seu! Já ouvi, uma vez que reclamei.

— Pão-duro! Você liga pra mixaria?

Tenho um conhecido que jamais tem dinheiro para dar ao manobrista. Sempre pede um trocado. Se eu não tenho, pede desculpas ao homem.

— Da próxima vez, dou em dobro. Ou então:

— Saí sem talão de cheques. Hoje você paga o jantar, o próximo é meu. Ah, que raiva! Dezfacadinha em facadinha, faz uma bela economia.

Surrupiar um queijinho no supermercado parece não ter sequer importância. Mas os pequenos delitos, quando somados, tornam a vida na cidade grande ainda mais selvagem.

Fonte: https://comissaodecultura.files.wordpress.com/2011/06/walcyr-carrasco-pequenos-delitos-e-outras-crc3b4nicas.pdf

A crônica é um gênero textual narrativo que parte de um fato do cotidiano e geralmente apresenta um uso mais literário da língua. Isso contribui para a aproximação e identificação do leitor com o texto, mas também exige do leitor um conhecimento de mundo específico para a compreensão e interpretação. No trecho ―De facadinha em facadinha, faz uma bela economia‖, a expressão em destaque equivale, semanticamente, ao ditado popular:
A
''É melhor prevenir do que remediar''
B
''Devagar se vai ao longe''.
C
''Casa de ferreiro, espeto de pau''.
D
''Quem tudo quer, tudo perde''.
E
''Mais vale um pássaro na mão do que dois voando''.