TEXTO II
No princípio, era o chão.
No piso do quintal, ladrilhado com cacos de cerâmica vermelha, via um elefante de três pernas, um navio, um homem de chapéu fumando cachimbo. Na manhã seguinte, as imagens haviam mudado: o homem de chapéu era um bolo mordido; o elefante, parte de um olho enorme — a tromba, um cílio —; o navio zarpara, deixando para trás apenas cacos de cerâmica vermelha no piso do quintal.
Na sala, com uma tampa de Bic levantava os tacos soltos para espiar o que se escondia embaixo: uma mosca morta, uma unha cortada, um grampo — pequenos achados arqueológicos, estudados com perícia através da lupa.
Deitado, a bochecha colada à madeira, sentindo no rosto a brisa fria que sopra ao rés do chão, espiava o vão escuro sob a cristaleira: a poeira formava tufos, matéria-prima da qual, acreditava, era feito o cobertor cinzento do mendigo da esquina. Tinha sua lógica: o homem miserável coberto pela manta de pó. Só não compreendia como a sujeira se transformava em tufo, o tufo em cobertor, e o cobertor ia parar em volta do mendigo. Mais um mistério, entre tantos deste mundo.
No princípio, eram as trevas.
Sentado no meio-fio, cavoucava com um graveto as fendas entre os paralelepípedos, esperando encontrar petróleo, ossos de dinossauro, tesouros escondidos por piratas, ruínas de extintas civilizações. Enquanto a sorte não vinha, contentava-me em desenterrar tampinhas enferrujadas, cascos de caramujo, fichas telefônicas; divertia-me desalojando minhocas, formigas e tatus-bola. Não respeitava as minhocas: mal saíam da terra, começavam a se debater feito loucas. Bicho aflito, mau exemplo. Não respeitava as formigas: indecisas, iam e vinham; burras, demoravam séculos para entender que bastava contornar a barreira surgida no meio do caminho (meu cuspe) para chegar lá — aonde quer que estivessem indo. Toda reverência aos tatus-bola.
Tocava-os de leve para vê-los se fechar em suas esféricas armaduras, depois os rolava para cá e para lá. Um dia, talvez influenciado pela semelhança visual e fonética entre bolas e balas, tentei comer um deles. Minha mãe (n)o(s) salvou na última hora, tirando-o da minha boca e devolvendo-o à terra ainda intacto.
Não ficou registrado na crônica familiar se alguma vez, longe da supervisão materna, eu e os tatus-b(a)ola chegamos às vias de fato.
(Trecho da crônica “Gênesis”. PRATA, Antonio. Nu de Botas. São Paulo: Companhia das Letras, 2013)