TEXTO I
O rei dos cacos
Ricardo Ramos (Adaptado)
Quando saio por aí, com meu irmão, brincamos de tudo: subimos em todas as árvores, principalmente nas mangueiras, corremos atrás de todos os bichos, principalmente das galinhas, e apanhamos todas as frutas, principalmente as verdes. Mas existe uma brincadeira que é diferente de todas as outras e é a melhor delas: andar dentro do córrego, pra baixo e pra cima. Minha mãe não gosta muito, nem minha avó, mas a gente anda assim mesmo. Meu pai nem vê, porque fica trabalhando o dia inteiro na fazenda, tratando das vacas, correndo de jipe, tirando leite, passeando a cavalo, cuidando dos porcos. Ele só para depois do almoço, pra ler uns jornais ou um livro.
Enquanto isso, nós dois, eu e meu irmão, no córrego, andamos pra baixo e pra cima. Mas nós não brincamos disso só por causa da água. É que lá no fundo, brilhando, sempre tem uns pedaços de vidro. Minha mãe diz, e minha avó concorda com ela, que o nome certo é louça, e louça antiga, mas nós já estamos acostumados, meu irmão e eu, a dizer que são cacos de vidro. Eles são grandes, pequenos, quebrados, redondos, compridos, grossos, finos, de todo jeito. Às vezes são coloridos, às vezes são brancos. Quando são brancos nós jogamos fora. Que graça tem guardar um caco de vidro branco? Os mais bonitinhos são os que têm umas florzinhas ou umas listrinhas. Minha mãe diz que são pedaços de aparelhos de jantar, tudo louça antiga, dos antigos donos da fazenda, tudo do tempo dos escravos. Quando ela fala isso, eu fico pensando nos escravos que ali deitavam uns por cima dos outros, naqueles porões imensos que existem debaixo da casa. Toda vez que tenho que passar lá dentro, eu e meu irmão, me agarro nele, com medo, mas não falo nada, senão meu irmão vai dizer que menina é assim mesmo, tem medo de tudo.
No córrego, procurando os cacos de vidro, não tenho medo de nada. Nem de fazer as apostas que fazemos todos os dias: quem é que vai achar o mais bonito, o mais colorido, o maior, o mais antigo. Meu irmão, que é maior do que eu, sempre diz que achou o mais bonito, o mais colorido, o mais antigo. Para saber quem achou o maior, medimos os cacos. E, às vezes, eu acho.
No fim do dia, quando chega a hora de ir para dentro de casa, passamos, antes, numa casinha onde moram todos os cacos. Meu pai disse que lá, antigamente, era um tanque onde se fabricava polvilho, depois de colhida a mandioca. Esse tanque é grande, de cimento e todo coberto de tábuas. Meu pai fez isso para nós, eu e meu irmão, senão os bichos entrariam lá dentro. Então, todas as tardes, antes de irmos para casa, nós afastamos as tábuas, entramos dentro do tanque, e guardamos, em mesinhas feitas com pedacinhos de outras tábuas e tijolos, os cacos do dia. Quase todos estão lá. Falta um só, pequeno, branco, com listras cor-de-rosa que meu irmão insiste em dizer que são de outra cor. Esse ele guarda separado, dentro de uma caixinha pequena, que é guardada dentro de uma caixa grande, junto com outras coisas só dele: pedrinhas, penas de passarinho, apitos, felipes de café que são dois grãos de café juntos, pedacinhos de cuia com goma esticada que chamamos de viola e caixas e mais caixas de fósforos. Meu irmão diz que foi ele quem achou o caco de vidro que é guardado separado e pôs nome: o rei dos cacos — mas é mentira, fui eu! — e o guardei na casinha do tanque, junto com as coisas só dele.
O rei dos cacos não pode ser visto a qualquer hora. Só em dias muito especiais, quando meu irmão resolve arrumar a caixa grande cheia de coisas. Ele tira todas, uma por uma, posso ver tudo desde que não ponha a mão em nada, guarda de novo, fecha, pronto, acabou. Durmo pensando no rei dos cacos, e ele também.
No outro dia, vamos de novo, bem cedo, andar no córrego. De vez em quando pulamos de alegria dentro d'água quando achamos um caco igual a outros que já temos. Vamos correndo ver se encaixa no pedaço que está guardado dentro do tanque. O meu maior sonho na vida é achar a outra metade do rei dos cacos. E acho que é, também, o maior sonho do meu irmão.
(RAMOS, Ricardo. Irmão mais velho, irmão mais novo. São Paulo: Atual, 1992. p.74-77.)
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