Questão
Colégio Militar - CM - 6º Ano
2021
VER HISTÓRICO DE RESPOSTAS
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TEXTO I 

ESTRANHAS GENTILEZAS 

Ivan Ângelo 
 
Estão acontecendo coisas estranhas. Sabe-se que as pessoas nas grandes cidades não têm o hábito da gentileza. Não é por ruindade, é falta de tempo. Gastam a paciência nos ônibus, no trânsito, nas filas, nos mercados, nas salas de espera, nos embates familiares, e depois economizam com a gente. 

Comigo, dá-se o contrário, é o que estou notando de uns dias pra cá. Tratam-me com inquietante delicadeza. Já captava aqui e ali sinais suspeitos, imprecisos, ventinho de asas de borboleta, quase nada. A impressão de que há algo estranho tomou corpo mesmo foi na semana passada. Um vizinho que já fora meu amigo telefonou-me desfazendo o engano que nos afastava, intriga de pessoa que nem conheço e que afinal resolvera esclarecer tudo. Difícil reconstruir a amizade, mas a inimizade morria ali. 

Como disse, eu vinha desconfiando tenuemente de algumas amabilidades. O episódio do vizinho fez surgir em meu espírito a hipótese de uma trama, que já mobilizava até pessoas distantes. E as próximas? 

Tenho reparado. As próximas telefonam amáveis, sem motivo. Durante o telefonema fico aguardando o assunto que estaria embrulhado nos enfeites da conversa, e ele não sai. Um número inesperado de pessoas me cumprimenta na rua, com acenos de cabeça. Mulheres, antes esquivas, sorriem transitáveis nas ruas dos Jardins. Num restaurante caro o maître, com uma piscadela, fura a demorada fila de executivos à espera e me arruma rapidinho uma mesa para dois. Um homem de pasta que parecia impaciente à minha frente me cede o último lugar no elevador. O jornaleiro larga sua banca na avenida Sumaré e vem ao prédio avisar-me de que o jornal chegou. Os vizinhos de cima silenciam após as dez da noite.

Caminhões baixam a luz dos faróis quando cruzam comigo na estrada. Motoristas, mesmo mulheres, cedem-me a preferência nas esquinas. Vendedores de bugigangas nos faróis de trânsito passam direto pelo meu carro, sem me olhar. Até crianças cumprimentam-me cúmplices: oi, tio. 

Que está acontecendo? Quem e por que está querendo me convencer de que as pessoas são um doce? Penso: não são gentilezas, são homenagens aos meus cabelos brancos, por eu ter aguentado tanto, como se fosse um atleta de maratona, daqueles retardatários que são mais aplaudidos na chegada do que os vencedores. 

A última manobra: botaram um pintassilgo a cantar para mim na árvore em frente à janela do meu apartamento de segundo andar. 

Que significa isto? Que querem comigo? Que complô é este? Que vão pedir em troca de tanta gentileza? Aguardo, meio apreensivo, meio feliz. 

Interrompo a crônica nesse ponto, saio para ir ao banco, desço pelas escadas porque alguém segura o elevador lá em cima, o segurança do banco faz-me esvaziar os bolsos antes de entrar pela porta giratória, enfrento a fila do caixa, não aceitam meus cheques para pagar contas em nome de minha mulher, saio mal-humorado do banco, atravesso a avenida arriscando a vida entre bólidos, um caminhão joga-me a água suja de uma poça, o elevador continua preso lá em cima, subo a pé, entro no apartamento, sento-me ao computador e ponho-me de novo a sonhar com gentilezas.

Fonte: ÂNGELO, Ivan. O comprador de aventuras. São Paulo: Ática, 2000.

Glossário: 

Embates: choque, encontro forte de opiniões 
Imprecisos: que não se podem precisar, vago, sem clareza 
Tenuemente: suavemente 
Mobilizava: mexia Esquivas: afastadas 
Transitáveis: agradáveis 
Jardins: bairro elegante de São Paulo 
Maître: funcionário responsável por agendamentos e reservas nos restaurantes 
Retardatários: atrasados 
Pintassilgo: espécie de passarinho 
Complô: trama, armação 
Apreensivo: preocupado 
Bólidos: carros velozes 


De acordo com as informações e características do texto, marque a alternativa correta: 
A
O texto narra uma história real, uma vez que os conflitos apresentados são comuns a todos os cidadãos de uma metrópole. 
B
A despeito da reflexão sobre os hábitos sociais, o autor faz uso de suas memórias afetivas para sensibilizar o leitor. 
C
Levando-se em conta os elementos da narrativa, o conflito se instala logo após o narrador perceber que, subitamente, os moradores da cidade adquiriram novos hábitos.
D
Tendo a rotina diária de uma metrópole como pano de fundo, o texto aborda a relação conflituosa entre moradores de uma mesma vizinhança. 
E
O texto apresenta narrador-personagem, que observa os fatos à distância, sem deles participar.