TEXTO 1
O anjo vendo as horas
1 O céu está limpo, não há nenhuma nuvem acima de nós.
2 O avião, entretanto, começa a dar saltos e temos de pôr os cintos para evitar uma
3 cabeçada na poltrona da frente. Olho pela janela: é que estamos sobrevoando de perto um
4 grande tumulto de montanhas.
5 As montanhas são belas, cobertas de florestas; no verde-escuro, há manchas de
6 ferrugem de palmeiras, algum ouro de ipê, alguma prata de embaúba – e, de súbito, uma
7 cidade linda e um rio estreito. (...)
8 É fácil explicar que o vento das montanhas faz corrente para baixo e para cima, como
9 também o ar é mais frio debaixo da leve nuvem. A um passageiro assustado, o comissário diz
10 que “isso é natural”. Mas o avião, com o tranquilo conforto imóvel com que nos faz vencer
11 milhas em segundos, havia nos tirado o sentimento do natural.
12 Somos hóspedes da máquina. Os motores foram revistos, estão perfeitos, funcionam
13 bem, e temos nossas passagens no bolso: tudo está em ordem.
14 Os solavancos nos lembram de que a natureza insiste em existir, e ainda nos precipita
15 além dela, para os reinos azuis da Metafísica. Pode o avião vencer a montanha e desprezar as
16 passagens antigas que a humanidade sempre trilhou. Mas sua vitória não pode ser saboreada
17 de perto: mesmo debaixo, a montanha ainda fez sentir que existe (...). Assim a humilde lagoa,
18 assim a pequena nuvem: a tudo isso somos sensíveis dentro do nosso monstro de metal.
19 A menina disse que era mentira, que não se via anjo nenhum nas nuvens. O homem,
20 porém, explicou que sim, e pediu que eu confirmasse. Eu disse:
21 - Tem anjo sim. Mas tem muito pouco. Até agora desde que saímos eu só vi um, e assim
22 mesmo de longe. Hoje em dia há poucos anjos no céu. Parece que eles se assustam com os
23 aviões. Nessas nuvens maiores nunca se encontra nenhum. Você deve procurar nas
24 nuvenzinhas pequenas, que ficam separadas umas das outras; é nelas que os anjos gostam de
25 brincar. Eles voam de uma para outra.
26 A menina queria saber de que cor eram as asas dos anjos e de que tamanho eles eram. O
27 homem explicou que os anjos tinham asas da mesma cor daquele vestidinho da menina e eram
28 de seu tamanho. Ela começou a duvidar novamente, mas chamamos o comissário de bordo.
29 Ele confirmou a existência dos anjos com a autoridade de seu ofício. Era impossível
30 duvidar da palavra do comissário de bordo, que usa uniforme e voa todo dia para um lado e
31 outro. E, além disso, ele tinha um argumento impressionante: “Então você não sabia que tem
32 anjos no céu?”. E perguntou se ela tinha vontade de ser anjo.
33 - Não.
34 - Que é que você quer ser?
35 - Aeromoça!
36 E começou a nos servir biscoitos. Dois passageiros que estavam cochilando acordaram
37 assustados porque ela apertou o botão que faz descer as costas das poltronas. Mas depois
38 riram e aceitaram os biscoitos.
39 (...)
40 Começamos a descer. E quando o avião tocava o solo, naquele instante de leve tensão
41 nervosa, ela se libertou do cinto (...) E disse que queria sair primeiro porque estava com muita
42 pressa para ver as horas na torre do edifício ali perto, pois já sabia ver as horas.
43 Não deviam ter-lhe ensinado isso. Ela já sabe tanta coisa! As horas se juntam, fazem os
44 dias, fazem os anos, e tudo vai passando, e os anjos depois não existem mais, nem no céu,
45 nem na terra.
BRAGA, Rubem. O anjo vendo as horas. 1ª ed. São Paulo: Global Editora, 2021. Texto adaptado.
Com base no Texto 1, assinale a alternativa correta.