Senhor Diretor
Seca no Nordeste. Na Amazônia, cheia — leu Maria Emília na manchete do jornal preso aos varais da banca com prendedores de roupa. Desviou o olhar severo para a capa da revista com a jovem de biquíni amarelo na frente, ele atrás, enlaçando-a na altura dos seios nus, amassados sob os braços peludos. Estavam molhados como se tivessem saído juntos de uma ducha. Sérios. Por que todas essas fotos obscenas tinham esse ar agressivo? Emendados feito animais. E brilhosos, escorrendo uma água oleosa, desde Sodoma e Gomorra os óleos e unguentos perfumados fazendo parte das orgias. Até a manteiga, imagine, a inocente manteiga. Audácia da Mariana em contar o episódio da manteiga, aquela indecência que viu num cinema em Paris. E se sacudindo de rir, foi tão engraçado, Mimi, ele dançando o tango de calças abaixadas, tão cômico! E confessou que viu o filme duas vezes para entender melhor aquele pedaço, a debiloide. É o cúmulo. Disse que apareceu uma marca de manteiga que aproveitou para fazer sua propaganda, funcional com ou sem sal! Três anos mais velha do que eu, sessenta e quatro e meio. E se deliciando com a cena de um anormal pedindo manteiga. Como é que as autoridades permitem tamanho deboche? Falta de respeito. De pudor. Se uma mulher de sessenta e quatro anos e meio se deixa levar como uma folha na correnteza, o que dizer então dos jovens? Meus Céus, meus Céus, os frágeis jovens sem estrutura, sem defesa, vendo esses filmes. Essas publicações. Televisão é outro foco de imoralidade. Anúncios mais sujos, uma afronta. Hoje mesmo escreveria uma carta ao Jornal da Tarde, carta vazada em termos educados. Suspirou. Ainda há pessoas educadas mas que também (a fisionomia endureceu) podem ficar coléricas. Senhor Diretor: antes e acima de tudo quero me apresentar, professora aposentada que sou, paulista, solteira. Um momento, solteira não, imagine, por que declinar meu estado civil? Basta isto, uma professora paulista que tomou a liberdade de lhe escrever porque a ninguém mais lhe ocorre expor sua revolta, mais do que revolta, seu horror diante desse espetáculo que a nossa pobre cidade nos obriga a presenciar desde o instante em que se põe o pé na rua. O pé na rua? A coisa já invadiu a intimidade dos nossos lares, não tenho filhos, é lógico, mas se tivesse estaria agora desesperada, essa mania de iniciar as crianças em assuntos de sexo, esses livros, esses programas infantis, Senhor Diretor, e esses programas que conspurcam nossas inocentes crianças, e o filme que fizeram com a manteiga! Um momento, espera, esse pedaço não: digo que a tevê está exorbitando de um modo geral em nos impor a imagem da boçalidade e digo que resisti em comprar uma televisão, Senhor Diretor. Mas sou sozinha e, às vezes, a solidão. A perigosa solidão. Mas fico vigilante (aprumou-se, levantou a cabeça) para não acontecer comigo o que aconteceu com a Mariana, tão fina, tão prendada. Família tradicional, de um dos melhores troncos paulistas, olha aí a Mariana. Viagem joia. Fiz compras lindas mas está na hora de voltar porque minha calça já perdeu o vinco, escreveu no cartão que me mandou de Manaus. A calça perdeu o vinco e ela, a vergonha. Sessenta e quatro anos e meio. Quem visse podia pensar, É uma jovem que foi fazer contrabando. Espera, jovem não, que jovem não se importa com vinco de calça, postal de uma velha mesmo e com medo de parecer desatualizada. Então conta bandalheiras, me diz ôi! no telefone e usa calça grudada no derrière. Só falta usar aquelas camisetas com coisas escritas nas costas. Tanto medo, Senhor Diretor. Tanto medo. Eu também tenho medo, é duro envelhecer, reconheço. Mas e o orgulho? Apertou a bolsa contra o peito e lançou um olhar em redor. Meus cabelos branquearam, meus dentes escureceram e minhas mãos, Senhor Diretor, estas mãos que — era voz corrente — foram sempre o que tive de mais bonito. Olhou as próprias mãos enluvadas. Ainda bem que estão enluvadas.
— A senhora me dá licença? — disse o vendedor de jornais despregando do varal a revista com os jovens escorrendo água.
Ela afastou-se com um olhar desaprovador para a mocinha de olhos bistrados, mascando chiclete de bola: queria a revista e queria também uma novela em quadrinhos, “Aquela ali”, pediu e entre os lábios o chiclete estufou rosado até estourar num puf! Maria Emília voltou depressa para o outro lado o rosto desgostoso, eis aí. Já estava escrevendo uma outra carta, meus Céus, não misturar os assuntos que velhice era outro tópico, agora tinha que se concentrar nessa sufocante vaga de vulgaridade que contaminava até as pedras. A poluição também ficaria para uma outra vez, o que interessava denunciar era essa poluição da alma. A Mariana, por exemplo. Está resistindo bem ao ar, até que está saudável apesar da asma, mas e por dentro? Resistir, quem há de? Uma ilusão gemia em cada canto — gemia ou chorava? Tempo de sentimento. De poesia. Agora o tempo ficou só de detergentes para as pias, desodorantes para as partes, a quantidade de anúncios de desodorantes. Como se o simples sabão não resolvesse mais. Mariana ouvia a publicidade na tevê, no rádio, entrava nos mercados e comprava tudo, até pílulas homeopáticas para excesso e escassez, mas Mariana, minha querida, já faz tanto tempo que você está na menopausa! Ela riu, meu Deus, é claro, ando atordoada com tanta ordem que eles dão, não é que acabei me distraindo? Um dia ainda vai me dizer que foi lançado o ser biônico para damas e cavalheiros solitários, a tevê deu, Mimi, fazem tudo com a gente! Portátil. Eletrodomésticos. Eletrochoques. Desconfio às vezes que ela está ficando louca, que todos estamos ficando loucos. Que estamos nos afastando cada vez mais de um planeta de paz e nos aproximando rapidamente de outro planeta só de aflição, só de violência (essa ideia é boa) e daí, Senhor Diretor, é preciso alertar a população, alertar as autoridades, temos que neutralizar essa influência perversa. O senhor, eu — a elite pode estar a salvo. Mas e os outros? Quando fui de ônibus para Brasília, eu mesma não me envolvi como uma criança débil? Por toda parte só um anúncio, Beba Coca-Cola! Beba Coca-Cola! Nas estradas, nas cidades, nas árvores e nas fachadas, nos muros e nos postes, até no toalete de lanchonetes perdidas lá no inferno velho, a ordem, Beba Coca-Cola! E eu então — ai de mim! — com toda a ojeriza que tenho por esse refrigerante, pensando em pedir uma tônica com limão ou um guaraná, naquele calor e naquele cansaço, cheguei no balcão e pedi uma Coca-Cola gelada. Acordei do obumbramento engolindo aquela coisa marrom com gosto de sabonete de trem, tinha um trem (faz tanto tempo, Senhor Diretor) com esse sabonete redondo e preto, dependurado na correntinha do toalete. Meu pai me ajudava a esfregar as mãos, eu era uma menininha de cachos mas até hoje sinto o cheiro daquela espuma. Imagine se papai estivesse vivo e soubesse do que aconteceu no Municipal, um moço subindo no palco e fazendo a necessidade, ali em cima dos dourados, sob as vistas de Carlos Gomes, de Verdi! Espera, melhor cortar esse pedaço, mais objetividade: insistir apenas nisso, no perigo dessa propaganda que, bem dirigida, pode até torcer um destino como aquele mágico torcia talheres. A ordem de beber Coca-Cola não corresponde de um certo modo a essa ordem de fazer amor, Faça amor, faça amor! Cheguei um dia a ter uma miragem quando em lugar da garrafinha escorrendo água no anúncio, VI um fálus no fundo vermelho. Em ereção, espumejando no céu de fogo — horror, horror, nunca VI nenhum fálus, mas a gente não acaba mesmo fazendo associações desse tipo? E os santos, meus Céus, como é que estão se defendendo os que têm vocação para a santidade? É preciso ter couro de jacaré para aguentar tamanho impacto. E esta pobre pele tão fina apesar do tempo, ainda preservada nas partes cobertas. Não foi no jornal que a Mariana leu (o fascínio que tem por jornais populares) o caso daquele moço? Monstruosidade, o moço que pegou uma garrafinha de Coca-Cola e enfiou quase inteira lá dentro da menina, horrível, quando chegaram ao hospital ela já estava agonizando, Mas por que fez isso, monstro?! o delegado perguntou e ele respondeu chorando aos gritos que também não sabia, não sabia, só se lembrava que uma vez leu numa revista que em Hollywood, numa festa que durou três dias, um artista enfiou uma garrafa de champanhe na namorada quando também não conseguiu fazer naturalmente. Mas me lembrei disso por lembrar, ideias extravagantes.
(Lygia Fagundes Telles. Seminário dos Ratos)
Com relação à construção narrativa do trecho em questão, indique a análise incorreta.