SER AUTOR
Escrever é difícil? Parece que sim, a julgar pelo que ouço de pessoas muito diversas, até mesmo de escritores. Imagine para os pobres mortais! E, sobretudo, acrescentaria, numa sociedade que se julga e é julgada por não saber, em geral, escrever. Até mestrandos e doutorandos, vejam só, recorrem a colegas, selecionados da área de Letras, que supõem “saber português”, para uma boa revisto do que rascunharam em seus trabalhos acadêmicos.
No meu tempo de docência universitária, ouvia, frequentemente, alunos comentarem que concluiriam o curso sem saberem escrever, que o português era difícil, com muitas regras e exceções! Tomava fôlego, quando este comentário era feito em sala de aula e, como quem não quer nada, indagava informalmente a um aluno: Por que você acha que não sabe português e que nossa(!) língua é difícil? Resposta invariável: Não domino bem estas classificações gramaticais e tenho também meus vacilos quanto ao uso da norma culta! Veja a gramática do inglês! Bem mais simples, não? Então, você escreve bem textos em inglês? É, mais ou menos…
Respiro fundo. Me lembro Iogo do Mário Quintana em situação semelhante: “Um dia de espantos, hoje. Conversando com uma rapariga em flor, estudante, queixa-se ela da dificuldade da língua portuguesa, espanto-me: Mas como pode ser difícil uma língua em que você está falando comigo há dez minutos com toda a facilidade? Ela ficou espantada.”
Meus espantos eram frequentes... Ainda são! A escola, embora queiram alguns tampar o sol com a peneira, estimula a cultura do erro, contribuindo muito, e desde cedo, para perpetuar esta avaliação de que a língua é difícil, de que escrever “um texto correto” então nem se fala! Basta uma concordância, uma regência, “as sintaxes de exceção”...
Passava para os meus alunos testemunhos de alguns escritores, valorizados como tais, o de Rachel de Queiroz, por exemplo: Se eu dependesse, afirmava, para escrever, do domínio dos nomes tão complicados presentes no ensino da língua (ela se divertia), eu não poderia ser escritora. Como é mesmo? Oração reduzida de gerúndio? Sujeito inexistente? Substantivo epiceno?, caçoava. E ela, acrescento, mesmo pela fala da narradora, nem sempre se vale da língua bem comportada.
Escrever, na verdade, ainda que adotado certinho o português que é ensinado, exige bem mais da gente: o conhecimento do real, a ordenação das ideias, o domínio do gênero textual, a intenção comunicativa... Muitos outros conhecimentos, enfim! A vivência dos bancos escolares prossegue atuante pela vida afora, qual uma corrente. Nos tornamos adultos, com curso superior, e carentes ainda de um professor, por perto, para nos corrigir! Não dá para entender, dá? Só os escritores (e, atualmente, nem todos, nem todos...) e os que se arvoram em conhecedores da língua escapam de uma avaliação severa. Eta língua é difícil! Eta sociedade que fica então a afrontar o uso da língua legitimado pelas autor(idades)!
Como ficar seguro de se assumir como autor, na escola e na vida, com tanto isto não pode, isto deve ser evitado, isto afronta as leis da língua, isto é de emprego não referendado pelos escritores (quais, na verdade?), isto, tenham paciência, é lá português? Perguntinha tola que me fica incomodando (gosto de me complicar - neurose? - com indagações perturbadoras): que língua falam todos os brasileiros (e são tantos!) sem escolaridade?
Fui a uma boa papelaria comprar um cartão para escrever a uma amiga, que aniversariava. Em minha procura, fui me dando conta de que eu só selecionava cartões com ilustrações de gosto duvidoso para mim: em geral, multicoloridas, florezinhas que estressavam o cartão, com variedade nas partes externa e interna deles, borboletas estilizadas então, em quase todos... E as mensagens? Sem erros gramaticais, diga-se logo! Mas que mensagens tolas, com palavras ou expressões mais que gastas, ou, ao contrário, meio solenes, com a pretensão, talvez, de darem ao texto certo sabor literário. Estas mensagens pouco variavam. Pudera!, eram impessoais. Onde o autor?
Sempre considerei que a vida, asseguradas certas igualdades, está na diferença. Uma palavra diferente pode nos proporcionar uma esperança nova. Indaguei a um funcionário da papelaria se não havia cartão, desses duplos, sem mensagem, e que a ilustração, caso existente, fosse sóbria (empreguei outra palavra, mais corrente, na ocasião). Não tinha, me respondeu. Coube, então, ao atendente me perguntar: Por que quer escrever a mensagem† Que trabalho! Já estão prontas em todos estes cartões daqui!
Capitulei. A sociedade, de modo geral, quer mesmo textos prontos e quase iguais. Reflexo mais evidente de gente que não está habituada a pensar, que acha que não pode ser autora nem de uma frasezinha (para que se expor assim à avaliação de um professor por ai?). Pego um destes cartões: “os primeiros raios de sol”, “iluminem seu coração”, “fazer seus pensamentos brilharem"... Positivamente não imagino uma criança ou um jovem como autor destas expressões. Para um adulto ser o destinatário, iriam pensar, iriam sim!, que ele as copiou justamente de um cartão destes, que já gozam de certa tradição, não se pode enganar!
No fundo mesmo, continuidade de uma rotina escolar antiga, em que o estudante, raramente, se sente autor do que escreve. Ouvi ou li outro dia o comentário pertinente que na escola se faz muita redação, mas se escreve pouco. Diria, que, sobretudo, quando se espera que, no texto, se crie um clima afetivo, com reticências, exclamações, interrogações. A escola se apresenta como a escola do ponto, fundamentalmente. Afinal, quase sempre, o interlocutor do aluno, - um interlocutor potente!
- , é o professor. Todo cuidado é pouco... não é? Por isso, muitas vezes, a presença, em textos escolares, de palavras com paletó e gravata, ainda que empregadas inadequadamente.
O Manoel de Barros tem razão: Língua solene é coisa de políticos e advogados. É preciso ir ao encriançamento das palavras, palavras-brinquedo, palavras bolhas-de-sabão... Em certas situações, naturalmente. Com crianças então! Para festejar o aniversário de uma amiga, por que, num cartão, não começar a ser autor com um singelo, mas carinhoso "Gosto de você" ou num torpedo com um sempre bem recebido “Um beijo, minha amiga”. Garantia assegurada de autoria textual! E de afetividade...
Fonte: UCHOA, Garlos Eduardo Falcão. A vida e o tempo em tom de conversa: crônicas de um professor de linguagem. 1º ed. Rio de Janeiro: Odisseia, 2013, p. 141-145. {Texto adaptado)
Em "Ouvi ou li outro dia o comentário pertinente que na escola se faz muita redação, mas se escreve pouco." (11°§), o autor estabelece uma diferença entre "fazer redação" e “escrever".
Assinale a opção em que o autor explica, implicitamente, a diferença entre os dois processos: “fazer redação” e “escrever”.