Questão
CFS - Demais Especialidades
2018
CFS - BCT
2018
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Quem casa quer casa 

Num tempo em que se casava depois de namorar e noivar, viajei com meu marido para a minha primeira casa, no mesmo dia do meu casamento. Partia na verdade para um reino onde, tendo modos à mesa e usando meia fina, seria uma mulher distinta como Dona Alice e seu marido saindo para a missa das dez. Pois sim, meu enxoval (...) foi despachado com zelo pela via férrea para uma cidade longe, tão longe que não pude eu mesma escolher casa e coisas. Como você quer nossos móveis?, havia perguntado meu noivo. Ah, eu disse, você pode escolher, mas gosto mesmo é daqueles escuros, pretos. Pensava na maravilhosa cristaleira de Dona Cecília, móveis de pernas torneadas e brilhantes, cama de cabeceira alta. Para a cozinha achei melhor nem sugerir, apostando na surpresa. Você pode cuidar de tudo, respondi a meu noivo atrapalhado com as providências, os poucos dias de folga na empresa, sozinho (...).Foi abrir a porta de nossa casa com alpendre e levei o primeiro susto de muitos de minha vida de casada. A mobília – palavra que sempre detestei – era daquele amarelo bonito de peroba. Tem pouco uso, disse meu marido, comprei de um colega que se mudou daqui. Gostei da cristaleira, seus espelhos multiplicando o ‘jogo de porcelana’ – que invenção! A cama era feia, egressa de um outro desenho, sem nada a ver com a sala. E a cozinha? O mesmo fogão a lenha que desde menina me encarvoara. O fogão a gás vem em duas semanas, explicou meu marido com mortificada delicadeza, adivinhando o borbotão de lágrimas. Mas o banheiro, este sim amei à primeira vista, azulejos, louça branca e um boxe com cortina amarela desenhada em peixes e algas. Recompensou-me. Faz quarenta anos desde minha apresentação a este meu primeiro banheiro com cortina, a um piso que se limpava com sapóleo, palavra que incorporei incontinente ao meu novo status. Vinha de uma casa com panelas de ferro que só brilhavam a poder de areia. (...) Quando me viu a pique de chorar, meu marido me disse naquele dia: quando puder, vou comprar móveis pretos e torneados pra você. Compreendi, com grande sorte para mim, que era melhor escutar aquela promessa ardente ao ouvido, que ter móveis bonitos e marido desatento. Do viçoso jardim arranquei quase tudo para ‘plantar do meu jeito’, tentativa de construir um lar, esperança que até hoje guardo e pela qual me empenho como se tivesse acabado de me casar. Adélia Pradohttps://cronicasurbanas/wordpress/tag/adelia-pradoVOCABULÁRIO alpendre: varanda coberta borbotão: caudal; jorro; jato forte, em grande quantidade egressa: afastada; retirada, que não pertence a um grupo encarvoara: sujara de carvão incontinente: que ou quem não se contém, sem moderação viçoso: que cresce e se desenvolve com vigor 

Adélia Prado

https://cronicasurbanas/wordpress/tag/adelia-prado

VOCABULÁRIO 

alpendre: varanda coberta 

borbotão: caudal; jorro; jato forte, em grande quantidade 

egressa: afastada; retirada, que não pertence a um grupo 

encarvoara: sujara de carvão

incontinente: que ou quem não se contém, sem moderação 

viçoso: que cresce e se desenvolve com vigor 

No que se refere ao texto, é correto afirmar que 
A
a esposa conteve sua irremediável vontade de chorar em razão da mortificada delicadeza do esposo de justificar os objetos da casa e da feliz descoberta de que este, em sua promessa ardente, não se esquecera de seus desejos
B
o primeiro susto da esposa – o de uma mobília sem beleza e a visão de um fogão a lenha – e o destaque para os muitos outros que ainda viriam revelam uma mulher frustrada, que escreve como forma de desabafo. 
C
a necessidade de comandar as tarefas domésticas, como a de lavar o piso do banheiro com sapóleo, mostra que o tipo de vida da esposa regredira em relação à vida na casa materna. 
D
o marido não se esforçou por realizar os pedidos de sua esposa, mas lhe ofereceu uma promessa ardente, que, por quarenta anos, ela esperava que se cumprisse.