O MEU AMIGO PINTOR (1986), DE LYGIA BOJUNGA, E A EXPERIÊNCIA TRAUMÁTICA
Em O meu amigo pintor, Lygia traz a história de um menino de nove anos chamado Cláudio que sofre recentemente a perda do melhor amigo por suicídio. A narrativa ocorre em primeira pessoa: o menino começa a relembrar e a questionar os acontecimentos três dias após a morte de seu amigo.
Cláudio inicia a narrativa dizendo que sua vida mudou a partir do momento em que conheceu seu amigo pintor, ele vê as coisas de uma maneira diferente, presta mais atenção, as cores e seus sentimentos variam conforme a intensidade e a “cara” das cores:
Eu não sei se eu nasci desse jeito ou se eu fui ficando assim por causa do meu amigo pintor, mas quando eu olho pra uma coisa eu me ligo logo é na cor.
Gente, casa, livro, é sempre igual: primeiro eu fico olhando pra cor do olho, da porta, da capa; só depois eu começo a ver o jeito que o resto tem. (BOJUNGA, 1987, p. 8)
A narrativa demonstra-se fragmentada durante todo seu processo. O leitor tem a ideia de que o amigo do menino morreu, e aos poucos vai percebendo o quão importante ele era para a vida de Cláudio. Em seguida, descobre a causa de sua morte, o suicídio, e como isso impactou a vida da criança. Também percebe o preconceito dos outros moradores do condomínio frente a esta situação. O amigo do pintor questiona-se o tempo todo sobre o porquê daquela atitude, até chegar ao fim, à conclusão de que seu amigo seria sempre o mesmo em sua memória. De acordo com Seligmann-Silva:
Mas ao invés de negarmos ao testemunho a possibilidade de ver na imaginação e em seu trabalho de síntese de imagens um potente aliado, devemos, com Derrida (1998), ver nesta aproximação entre o campo testemunhal e o da imaginação a possibilidade mesma de se repensar tanto a literatura, como o testemunho e o registro da escrita autodenominada de séria e representacionista. Ocorre uma re- visão da noção de literatura justamente porque do ponto de vista do testemunho ela passa a ser vista como indissociável da vida, a saber, como tendo um compro- misso com o real. (SELIGMANN-SILVA, 2008, p. 65)
Sendo assim, narrar o trauma, independentemente de seu teor, é uma forma de alívio, buscar respostas na narrativa, ao invés de negar, edifica o homem em seu crescimento rumo à pseudo- superação dos eventos traumáticos, pois o indivíduo jamais torna a ser o que era, sua vida está marcada entre dois momentos: antes e depois do trauma.
A busca por respostas faz parte do indivíduo traumatizando, tanto que Cláudio pergunta os motivos de terem levado seu amigo pintor a cometer o ato suicida e tenta encontrar pistas. Uma das pistas deixadas na narrativa se refere a um portfólio que o Amigo Pintor deu de presente a Cláudio. Um dos anúncios dos suicidas é que eles fazem testamentos ou distribuem seus bens a amigos e familiares antes de cometerem o ato.
Um dia o meu amigo me disse que eu era um garoto com alma de artista, e me deu um álbum com uns trabalhos que ele tinha feito em aquarela, tinta a óleo e pastel. Disse que tinha arrumado os trabalhos no álbum para eu entender melhor esse negócio de cor. (BOJUNGA, 1987, p.8)
O menino, ao percorrer suas memórias, percebe que o amigo era triste e já não conseguia mais ver sentido nas obras que fazia, outro sinal de depressão:
- Mas você é um bom pintor!
- Não! Não, eu não sou. Eu sei muito bem como é que se pinta; eu tenho técnica; eu trabalho e trabalho para ver se eu dou vida aos meus quadros. Mas não adian- ta: são telas mortas.
– Foi apontando com o pincel: - Olha. Olha! Olha!! Não dá pra ver? Não dá pra sentir que a minha pintura não tem vida?
– E aí ele jogou o pincel na mesa com um jeito meio, sei lá, um jeito desesperado que, francamente, eu nunca tinha visto ele ter. (BOJUNGA, 1987, p. 36)
Outro fator importante a ser destacado sobre o Amigo Pintor é que ele foi preso durante muito tempo na ditadura militar. Durante a narrativa ficam claras as paixões do amigo:
Clarice, a arte e a política. A militância no período ditatorial brasileiro – até mesmo sua participação em grupos de luta armada, já que diversas vezes se fala que o personagem viajava muito no referido período e ficava dias sem dar notícias – fez com que ele fosse preso. Este episódio marcou a vida do pintor para sempre. Tal fato pode explicar sua não superação de um trauma, que consequentemente o levou a cometer suicídio.
Os vestígios de que o Amigo Pintor cometeria suicídio e seus motivos são dados de forma fragmentada pelo narrador, ele não segue uma linha cronológica de pensamentos. O seu narrar divide-se em lembranças, flashbacks e sonhos. Todos esses recursos levam o menino a aceitar a condição de que não há explicação para o que o amigo fez, mas que ele sempre será lembrado em sua memória de forma carinhosa:
Agora, quando eu penso no meu Amigo (e eu continuo pensando tanto!) eu penso nele inteiro, quer dizer: cachimbo, tinta, por quê?, gamão, flor que ele gostava, morte de propósito, por quê, relógio batendo, amarelo, por quê, blusão verde: tudo bem junto e misturado.
E comecei a gostar de pensar assim. Acho até que se eu continuo gostando de cada por quê que aparece, eu acabo entendendo um por um. (BOJUNGA, 1987, p. 51)
REFERÊNCIA: https://periodicos.ufsm.br/LA/article/view/40754/22925, acesso em 19 de março de 2023
No contexto do seguinte trecho extraído do texto VI, analise o valor semântico a que pertencem os termos grifados:
Em O meu amigo pintor, Lygia traz a história de um menino de nove anos chamado Cláudio que sofre recentemente a perda do melhor amigo por suicídio."