Leia o texto abaixo e responda.
No Retiro da Figueira
(Moacyr Seliar)
1° § Sempre achei que era bom demais. O lugar, principalmente. O lugar era... era maravilhoso. Bem como dizia o prospecto: maravilhoso. Arborizado, tranqüilo, um dos últimos locais - dizia o anúncio - onde você pode ouvir um bem-te-vi cantar. Verdade: na primeira vez que fomos lá ouvimos o bem-te-vi. E também constatamos que as casas eram sólidas e bonitas, exatamente como o prospecto as descrevia: estilo moderno, sólidas e bonitas. Vimos os gramados, os parques, os pôneis, o pequeno lago. Vimos o campo de aviação. Vimos a majestosa figueira que dava nome ao condomínio: Retiro da Figueira.
2° § Mas o que mais agradou à minha mulher foi a segurança. Durante todo o trajeto de volta à cidade - e eram uns bons cinqüenta minutos - ela falou, entusiasmada, da cerca eletrificada, das torres de vigia, dos holofotes, do sistema de alarmes - e sobretudo dos guardas. Oito guardas, homens fortes, decididos - mas amáveis, educados. Aliás, quem nos recebeu naquela visita, e na seguinte, foi o chefe deles, um senhor tão inteligente e culto que logo pensei: "ah, mas ele deve ser formado em alguma universidade". De fato: no decorrer da conversa ele mencionou - mas de maneira casual - que era formado em Direito. O que só fez aumentar o entusiasmo de minha mulher.
3° § Ela andava muito assustada ultimamente. Os assaltos violentos se sucediam na vizinhança; trancas e porteiros eletrônicos já não detinham os criminosos. Todos os dias sabíamos de alguém roubado e espancado; e quando uma amiga nossa foi violentada por dois marginais, minha mulher decidiu - tínhamos de mudar de bairro. Tínhamos de procurar um lugar seguro.
4° § Foi então que enfiaram o prospecto colorido sob nossa porta. Às vezes penso que se morássemos num edifício mais seguro o portador daquela mensagem publicitária nunca teria chegado a nós, e, talvez... Mas isto agora são apenas suposições. De qualquer modo, minha mulher ficou encantada com o Retiro da Figueira. Meus filhos estavam vidrados nos pôneis. E eu acabava de ser promovido na firma. As coisas todas se encadearam, e o que começou com um prospecto sendo enfiado sob a porta transformou-se - como dizia o texto - num novo estilo de vida.
5° § Não fomos os primeiros a comprar casa no Retiro da Figueira. Pelo contrário; entre nossa primeira visita e a segunda - uma semana após - a maior parte das trinta residências já tinha sido vendida. O chefe dos guardas me apresentou a alguns dos compradores. Gostei deles: gente como eu, diretores de empresa, profissionais liberais, dois fazendeiros. Todos tinham vindo pelo prospecto. E quase todos tinham se decidido pelo lugar por causa da segurança.
6° § Naquela semana descobri que o prospecto tinha sido enviado apenas a uma quantidade limitada de pessoas. Na minha firma, por exemplo, só eu o tinha recebido. Minha mulher atribuiu o fato a uma seleção cuidadosa de futuros moradores - e viu nisso mais um motivo de satisfação. Quanto a mim, estava achando tudo muito bom. Bom demais.
7º § Mudamo-nos. A vida lá era realmente um encanto. Os bem-te-vis eram pontuais: às sete da manhã começavam seu afinado concerto. Os pôneis eram mansos, as aléias ensaibradas estavam sempre limpas. A brisa agitava as árvores do parque - cento e doze, bem como dizia o prospecto. Por outro lado, o sistema de alarmes era impecável. Os guardas compareciam periodicamente à nossa casa para ver se estava tudo bem - sempre gentis, sempre sorridentes. O chefe deles era uma pessoa particularmente interessada: organizava festas e torneios, preocupava-se com nosso bem-estar. Fez uma lista dos parentes e amigos dos moradores - para qualquer emergência, explicou, com um sorriso tranqüilizador. O primeiro mês decorreu - tal como prometido no prospecto - num clima de sonho. De sonho, mesmo.
8° § Uma manhã de domingo, muito cedo - lembro-me que os bem-te-vis ainda não tinham começado a cantar - soou a sirene de alarme. Nunca tinha tocado antes, de modo que ficamos um pouco assustados - um pouco, não muito. Mas sabíamos o que fazer: nos dirigimos, em ordem, ao salão de festas, perto do lago. Quase todos ainda de roupão ou pijama.
9° § O chefe dos guardas estava lá, ladeado por seus homens, todos armados de fuzis. Fez-nos sentar, ofereceu café. Depois, sempre pedindo desculpas pelo transtorno, explicou o motivo da reunião: é que havia marginais nos matos ao redor do Retiro e ele, avisado pela polícia, decidira pedir que não saíssemos naquele domingo.
10° § - Afinal - disse, em tom de gracejo - está um belo domingo, os pôneis estão aí mesmo, as quadras de tênis...
11° § Era mesmo um homem muito simpático. Ninguém chegou a ficar verdadeiramente contrariado.
12° § Contrariados ficaram alguns no dia seguinte, quando a sirene tornou a soar de madrugada. Reunimo-nos de novo no salão de festas, uns resmungando que era segunda-feira, dia de trabalho. Sempre sorrindo, o chefe dos guardas pediu desculpas novamente e disse que infelizmente não poderíamos sair - os marginais continuavam nos matos, soltos. Gente perigosa; entre eles, dois assassinos foragidos. À pergunta de um irado cirurgião o chefe dos guardas respondeu que, mesmo de carro, não poderíamos sair; os bandidos poderiam bloquear a estreita estrada do Retiro.
13° § - E vocês, por que não nos acompanham? - perguntou o cirurgião.
14° § - E quem vai cuidar da família de vocês? - disse o chefe dos guardas, sempre sorrindo.
15° § Ficamos retidos naquele dia e no seguinte. Foi aí que a polícia cercou o local: dezenas de viaturas com homens armados, alguns com máscaras contra gases. De nossas janelas nós os víamos e reconhecíamos: o chefe dos guardas estava com a razão.
16° § Passávamos o tempo jogando cartas, passeando ou simplesmente não fazendo nada. Alguns estavam até gostando. Eu não. Pode parecer presunção dizer isto agora, mas eu não estava gostando nada daquilo.
17° § Foi no quarto dia que o avião desceu no campo de pouso. Um jatinho. Corremos para lá.
18° § Um homem desceu e entregou uma maleta ao chefe dos guardas. Depois olhou para nós - amedrontado, pareceu-me - e saiu pelo portão da entrada, quase correndo.
19° § O chefe dos guardas fez sinal para que não nos aproximássemos. Entrou no avião. Deixou a porta aberta, e assim pudemos ver que examinava o conteúdo da maleta. Fechou-a, chegou à porta e fez um sinal. Os guardas vieram correndo, entraram todos no jatinho. A porta se fechou, o avião decolou e sumiu.
20° § Nunca mais vimos o chefe e seus homens. Mas estou certo que estão gozando o dinheiro pago por nosso resgate. Uma quantia suficiente para construir dez condomínios iguais ao nosso - que eu, diga-se de passagem, sempre achei que era bom demais.
(Os melhores contos. 2. Ed. São Paulo, Global, 1968.)
A alternativa em que pelo menos duas palavras recebem acento gráfico segundo a mesma regra de acentuação gráfica é