Fumar sem ser fumante
O médico proibiu Mário de Andrade de fumar:
— Se você largar o cigarro, ainda poderá ter uns 20 anos de vida.
E Mário, desencantado:
— De que me adianta viver mais 20 anos sem fumar?
A partir de então, trancava-se no banheiro para acender um cigarrinho, escondendo-se de si mesmo. E o conhecido médico que um dia fez a solene promessa ao filho:
— Meu filho: dou-lhe a minha palavra de honra que você nunca mais me verá com um cigarro na boca.
Homem de palavra: o filho nunca mais o viu fumando. Tempos depois, ao entrar no escritório do pai, dá com uma fumacinha no ar, e eis o velho atirando rápido alguma coisa pela janela, depois se voltando com ar sonso:
— Que foi, meu filho? Por que está me olhando?
O rapaz se pôs a rir:
— Mas que flagra, hein? Você não tinha dado a sua palavra de honra que nunca mais havia de fumar?
O velho pigarreou, compenetrando-se:
— Meu filho, eu vou lhe dizer uma coisa, saiba de uma vez por todas: cheguei à conclusão definitiva de que honra e cigarro são duas coisas absolutamente incompatíveis.
Deixar de fumar. Conheço um que deixou durante três anos. Um dia viu Charles Boyer segurar delicadamente um cigarro na ponta dos dedos, levá-lo à boca, tirar uma daquelas tragadas francesas de encher o peito, e depois dizer para Michele Morgan je t’aime, soltando fumaça. Saiu do cinema, comprou um maço de Hollywood e fumou-o inteiro, um cigarro atrás do outro.
Estou proibido de citar a velha frase atribuída a Mark Twain, a Bernard Shaw, a Churchill: nada mais fácil — já deixaram umas 20 vezes.
Pois aqui está o homem que deixou o cigarro. Mais um dia sem fumar! — diz ele, satisfeito, se olhando ao espelho antes de ir dormir. Sabe a data precisa: desde o dia onze de outubro de mil nove centos e setenta e dois (às 3h:35 da manhã). Com isso exatamente nove meses. Está para nascer, de um momento para outro. Está para nascer o homem novo, sem sarro nos dentes ou nos dedos, e sem úlcera de estômago, distúrbio das coronárias, enfisema pulmonar. Vai até a janela e respira fundo o ar puro da noite, batendo com as mãos espalmadas no peito. Vem-lhe a lembrança dos tempos em que a essa hora fumava ali na janela o último cigarrinho antes de se meter na cama — lembrança que ele afasta como fumaça, sacudindo a mão no ar. No fundo sabe que nunca mais será o mesmo, sente-se vagamente viúvo. Há nele qualquer coisa de ex-presidiário ou de défroqué: o cigarro o estigmatizou para sempre. “Mas pelo menos não morrerei de câncer” — conclui ele.
“Fumar é morrer um pouco” — diz um artigo que tenho diante dos olhos: “os fumantes têm uma probabilidade duas vezes maior de morrer na meia-idade do que os que não fumam”.
Sou um homem de meia-idade; e, como deixei de fumar há coisa de meia hora atrás, a minha probabilidade de morrer neste instante ficou reduzida à metade. Resta a outra metade, ou seja, a morte em decorrência de outras causas. Quanto a estas, não creio que haja nada a fazer. Não há outros vícios que eu posso abandonar, a não ser o de viver.
Viver faz tanto mal à saúde quanto fumar. Viver também é morrer um pouco. Faz cair os cabelos e os dentes. Provoca rugas na pele, flacidez nos músculos e artrite nos ossos. Enfraquece a cabeça, combate o organismo e ataca o coração. É o próprio suicídio preconizado pelos que não têm pressa.
E o pior é que os fumantes nem ao menos têm o consolo de saber que estão afugentando a morte quando abandonam o fumo, pois diz aqui o tal artigo: “somente ao fim de dez anos de abstinência tabágica as possibilidades de falecer em consequência do hábito são iguais às das pessoas que não fumam”.
(Fernando Sabino. Deixa o Alfredo falar. Record, 1976. Fragmento.)
O uso do diminutivo em “A partir de então, trancava-se no banheiro para acender um cigarrinho, escondendo-se de si mesmo” é justificado pelo fato de o autor construir uma