Estirar a língua
Estirar a língua para alguém é um insulto, um gesto agressivo, atrevido e grosseiro e tem a mesma significação de vitupério em quase todas as paragens do mundo. Sua divulgação é instintiva, independendo de ensino e de memória. É natural, milenar e diário, sem origem, sem história, sem referência, mas “nacional” nos povos que o conhecem, imemorialmente.
Trezentos e sessenta e dois anos antes de Cristo, os gauleses assaltaram Roma com a violência tradicional. Um dos guerreiros, agigantado, confiando na robustez pessoal, diante do exército romano, desafiou-o para um duelo, exigindo um antagonista para o combate singular. Os romanos, intimidados com a arrogância selvagem, estavam silenciosos. O gaulês começou a rir com zombaria, e pôs a língua de fora num escárnio: – Deinde Gallus irridere coepit atque linguam exertare. O jovem Titus Manlius, indignado com o ultraje, enfrentou o altíssimo inimigo, derrubou-o, decepou-lhe a cabeça, arrancando-lhe do pescoço um colar de ouro, ornando-se com ele, a título de troféu. Ficou chamado Torquatus, de torques, o colar. O episódio consta em Tito Livio (VII, 9, 10) e em Aulo Gélio (IX, 13,3), divulgando página dos desaparecidos Anais de Q. Claudius.
Pelo exposto, há vinte e quatro séculos, a língua estirada tinha a mesma significação insultosa, humilhante e provocadora dos nossos dias. Era gesto idêntico para romanos e gauleses, germânicos, celtas. Decorrentemente é de esperar que fosse conhecido por toda a Europa histórica no quarto século antes de Jesus Cristo nascer.
Dante Alighieri, na Divina comédia (Inferno, XVII, 74 -75), encontra o paduano Reginaldo degli Scrovegni a língua tira, qual boi que os beiços lambe, ressequidos, nas amarguras do oitavo círculo. Os demônios repetem o gesto saudando seu duca satânico, no canto XXI, versos 137 -138:
ma prima avea ciascum la lingua stretta
coi danti versi lor duca por cenno!
A língua de fora, traduzindo linguagem desafiante, faz parte do patrimônio europeu dos gestos populares, da Inglaterra à Rússia, para os povos ao redor do Mediterrâneo, em ambas as margens. Não há documento de sua existência no continente africano, entre os negros, antes do maior contato europeu. Ignoramos seu uso nas culturas asiáticas, mas não é ausente de um ou outro relevo alegórico. Na América pré-colombiana surge entre os maias de Chich’en Itzá, nos mixtecos de Cholula, num deus tigre dos olmecas e entre os signos dos dias astecas, os que figuram animais, alguns têm a língua estendida ou pendente, mazatl, itzcuintli, ocelotl, cuanhtli, coatl, coscaquauhtli. Em certos calendários astecas a figura central repete o modelo da Górgona. Não sabemos, em todos, se é pormenor complementar do desenho ou tenha intenção simbólica positiva.
Seu maior centro de dispersão é na Europa Mediterrânea, possivelmente grego, pertencente ao ciclo atemorizador da Górgona, única entidade mítica que se apresenta de língua pendente. Em menor escala há o deus egípcio Bes, Bisou, Bésou, jovial e bem-humorado, embora de repelente fealdade e limitada repercussão devocional. A Medusa, a Górgona mortal que Perseu sacrificou, é a mais antiga máscara onde aparece a língua estirada em função apavorante. Os Bés do Egito são posteriores.
Pôr a língua de fora seria a face da Medusa na intenção intimidante, estarrecendo o inimigo, petrificando-o pelo olhar encantado do monstro. Estabelecer o pavor nos adversários era fórmula natural que se obtinha com os ornatos extravagantes, imitando dragões, animais ferozes, deuses propícios, e mesmo fazendo caretas, transformações do rosto normal para o fantástico, como as crianças amam empregar. O gesto da língua de fora alcança os terrenos da influência clássica da Grécia e desta para Roma. Nenhuma comparticipação do Egito. As Górgonas eram criações ocidentais e não orientais. A máscara da Medusa não ficou perpetuamente na função de assombrar e amedrontar o adversário. Foi amuleto benéfico, o gorgoneion, mas a persistência incontestável ocorreu como elemento terrífico. Suas representações, medalhões, frisos em certas igrejas da Inglaterra como Stratford-sobre-o-Avon, Maglalem College em Oxford, seriam evocações convencionais da Luxúria, segundo as deduções de Thomas Wright, de a Medusa-Górgona ficar sendo símbolo da Luxúria,
porque o gesto de estirar a língua, típico na maioria dos modelos gregos, nenhuma ligação terá com o erotismo. Wright limita-se a uma afirmativa sem explicação convincente.
Luis da Camara Cascudo. Coisas que o povo diz.
O autor, durante o texto, apresenta a ideia de que, ainda que agressivo, o gesto de estirar a língua aos outros é quase natural na maior parte dos países e culturas do mundo. Dessa forma, entende-se que essa é uma prática