Questão
Simulado EEAR
2022
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Cheguei domingo às oito da manhã, pé ante pé para não acordar minha mulher. Apesar do voo, que saíra de Manaus às três da madrugada, estava disposto: havia dormido algumas horas no barco-escola e durante toda a viagem, até aterrissarmos em São Paulo.

Desfiz a mala, providência adotada desde que comecei a viajar feito cigano e sem a qual não sinto haver chegado a lugar nenhum, e fui correr no Minhocão.

"Alegria de paulista", disse uma amiga carioca quando contei que aproveitava a interdição do tráfego aos domingos para correr na pista elevada que faz parte da ligação leste — oeste da cidade, excrescência do urbanismo paulistano acessível a quinhentos metros de casa, no centro.

Minha amiga tem razão, talvez seja programa de quem vive numa cidade cinzenta, congestionada, gigantesca, na qual, para enxergar uma nesga de céu, é preciso correr risco de morte debruçado na janela. Compreendo o encanto de morar em meio a paisagens paradisíacas ou em cidades bucólicas onde todos se conhecem, mas para os neuróticos, fascinados pela velocidade do cotidiano, pelo convívio com a diversidade étnica e com as manifestações de criatividade que emergem nos aglomerados humanos, correr domingo de manhãzinha na altura do segundo andar dos prédios da avenida São João é um prazer.

No interior dos apartamentos o olhar bisbilhoteiro entrevê mobílias escuras, guarda-roupas pesados, estantes improvisadas e, claro, o televisor.

Logo cedo, os craqueiros recolhem seus pertences nas rampas laterais para dar espaço aos primeiros corredores, ciclistas e andarilhos, e caminham na direção da Estação da Luz com o cobertorzinho ordinário nos ombros. Parecem morcegos afugentados pela claridade.

Duvido que exista paisagem dominical mais urbana. A mulher de camisola florida e cabelo desgrenhado abre a cortina e boceja, despudorada; o senhor de pijama leva a gaiola do passarinho para o terraço espremido; o homem de abdômen avantajado escova os dentes distraído na janela; o de barba branca com gorro de lã, a cara do Bin Laden, empilha os móveis para a faxina da semana.

Havia planejado completar vinte e quatro quilômetros, mas, depois de percorrer seis vezes os três quilômetros de extensão da referida excrescência, sucumbi ao peso da noite maldormida. Tomei água-de-coco, comprei pão e subi pela escada até o décimo quarto andar do prédio onde moro, exercício aprendido com um de meus pacientes, que aos setenta e seis anos subia dez vezes por dia doze andares. E, não satisfeito com a intensidade do esforço, fazia-o vestido com um blusão repleto de bolsos, nos quais distribuía vinte quilos de chumbo.

Meu domingo seguiu a rotina: fui ao hospital, telefonei para alguns doentes, tomei uma dose de cachaça mineira, visitei minha netinha, escrevi durante a tarde e assisti ao terceiro episódio de uma série sobre obesidade apresentada por mim, na televisão.


Drauzio Varella. O médico doente. Companhia das Letras: São Paulo, 2015.

No trecho “E, não satisfeito com a intensidade do esforço, fazia-o vestido com um blusão repleto de bolsos, nos quais distribuía vinte quilos de chumbo”, a trecho entre vírgulas apresenta leitura de
A
causa.
B
consequência.
C
concessão.
D
tempo.