Questão
Sprint ITA/IME
2022
Chefe-Relacoes973b7555354
O Chefe das Relações Públicas, um jovem de baixa estatura, atarracado, sorriso e olhos extremamente brilhantes, ajeitou o nó da gravata vermelha e bateu de leve na porta do Secretário do Bem-Estar Público e Privado:

— Excelência?

O Secretário do Bem-Estar Público e Privado pousou o copo de leite na mesa e fez girar a poltrona de couro. Suspirou. Era um homem descorado e flácido, de calva úmida e mãos acetinadas. Lançou um olhar comprido para os próprios pés, o direito calçado, o esquerdo metido num grosso chinelo de lã com debrum de pelúcia.

— Pode entrar — disse ao Chefe das Relações Públicas que já espiava pela fresta da porta. Entrelaçou as mãos na altura do peito. — Então? Correu bem o coquetel?

Tinha a voz branda, com um leve acento lamurioso. O jovem empertigou-se. Um ligeiro rubor cobriu-lhe o rosto bem escanhoado.

— Tudo perfeito, Excelência. Perfeito. Foi no Salão Azul, que é menor, Vossa Excelência sabe. Poucas pessoas, só a cúpula, ficou uma reunião assim aconchegante, íntima, mas muito agradável. Fiz as apresentações, bebericou-se e — consultou o relógio — veja, Excelência, nem seis horas e já se dispersaram. O Assessor da Presidência da RATESP está instalado na ala norte, vizinho do Diretor das Classes Conservadoras Armadas e Desarmadas, que está ocupando a suíte cinzenta. Já a Delegação Americana achei conveniente instalar na ala sul. Por sinal, deixei-os há pouco na piscina, o crepúsculo está deslumbrante, Excelência, deslumbrante!

— O senhor disse que o Diretor das Classes Conservadoras Armadas e Desarmadas está ocupando a suíte cinzenta. Por que cinzenta?

O jovem pediu licença para se sentar. Puxou a cadeira, mas conservou uma prudente distância da almofada onde o Secretário pousara o pé metido no chinelo. Pigarreou.

— Bueno, escolhi as cores pensando nas pessoas — começou com certa hesitação. Animouse: — A suíte do Delegado Americano, por exemplo, é rosa-forte. Eles gostam das cores vivas. Para a de Vossa Excelência escolhi este azul-pastel, mais de uma vez VI Vossa Excelência de gravata azul... Já para a suíte-norte me ocorreu o cinzento, Vossa Excelência não gosta da cor cinzenta?

O Secretário moveu com dificuldade o pé estendido na almofada. Levantou a mão. Ficou olhando a mão.

— É a cor deles. Rattus alexandrinus.

— Dos conservadores?

— Não, dos ratos. Mas enfim, não tem importância, prossiga, por favor. O senhor dizia que os americanos estão na piscina, por que os? Veio mais de um?

— Pois com o Delegado de Massachusetts veio também a secretária, uma jovem. E veio ainda um ruivo de terno xadrez, tipo um pouco de boxer, meio calado, está sempre ao lado dos dois. Suponho que é um guarda-costas, mas é simples suposição, Excelência, o cavalheiro em questão é uma incógnita. Só falam inglês. Aproveitei para conversar com eles, completei há pouco meu curso de inglês para executivos. Se os debates forem em inglês, conforme já foi aventado, darei minha colaboração. Já o castelhano eu domino perfeitamente, enfim, Vossa Excelência sabe, Santiago, Buenos Aires...

— Fui contra a indicação. Desse americano — atalhou o Secretário num tom suave mas infeliz. — Os ratos são nossos, as soluções têm que ser nossas. Por que botar todo mundo a par das nossas mazelas? Das nossas deficiências? Devíamos só mostrar o lado positivo não apenas da sociedade mas da nossa família. De nós mesmos — acrescentou apontando para o pé em cima da almofada. — Por que não apareci ainda, por quê? Porque simplesmente não quero que me vejam indisposto, de pé inchado, mancando. Amanhã calço o sapato para a instalação, de bom grado faço esse sacrifício. O senhor, que é um candidato em potencial, desde cedo precisa ir aprendendo essas coisas, moço. Mostrar só o lado positivo, só o que pode nos enaltecer. Esconder nossos chinelos.

— Mas Vossa Excelência me permite, esse americano é um técnico em ratos, nos Estados Unidos também têm muitos ratos, ele poderá nos trazer sugestões preciosas. Aliás, estive sabendo que é um expert em jornalismo eletrônico.

— Pior ainda. Vai sair buzinando por aí — suspirou o Secretário, tentando mudar a posição do pé. — Enfim, não tem importância. Prossiga, prossiga, queria que me informasse sobre a repercussão. Na imprensa, é óbvio.

O Chefe das Relações Públicas pigarreou discretamente, murmurou um bueno e apalpou os bolsos. Pediu licença para fumar.

— Bueno, é do conhecimento de Vossa Excelência que causou espécie o fato de termos escolhido este local. Por que instalar o VII Seminário dos Roedores numa casa de campo, completamente isolada? Essa a primeira indagação geral. A segunda é que gastamos demais para tornar esta mansão habitável, um desperdício quando podíamos dispor de outros locais já prontos. O noticiarista de um vespertino, marquei bem a cara dele, Excelência, esse chegou a ser insolente quando rosnou que tem tanto edifício em disponibilidade, que as implosões até já se multiplicam para corrigir o excesso. E nós gastando milhões para restaurar esta ruína...

O Secretário passou o lenço na calva e procurou se sentar mais confortavelmente. Começou um gesto que não se completou. — Gastando milhões? Bilhões estão consumindo esses demônios, por acaso ele ignora as estatísticas? Estou apostando como é da esquerda, estou apostando. Ou então, amigo dos ratos. Enfim, não tem importância, prossiga por favor.

— Mas são essas as críticas mais severas, Excelência. Bisonhices. Ah, e aquela eterna tecla que não cansam de bater, que já estamos no VII Seminário e até agora, nada de objetivo, que a população ratal já se multiplicou sete mil vezes depois do I Seminário, que temos agora cem ratos para cada habitante, que nas favelas não são as Marias mas as ratazanas que andam de lata d’água na cabeça — acrescentou contendo uma risadinha. — O de sempre... (...)

(Conto O Seminário dos Ratos, Lygia Fagundes Telles)

O ambiente escolhido por Lygia Fagundes Telles para sediar a narrativa, um casarão antigo, reformado, afastado da cidade, metaforiza a própria relação do governo para com a situação da população, pois
A
ao passo que o governo se encontra em lugares completamente impossíveis de serem invadidos por ratos, a população convive com eles diariamente dentro de suas casas.
B
se por um lado há uma preservação com o ambiente e a natureza, evidenciado pela escolha de um local próximo à natureza, por outro o governo deseja eliminar os ratos.
C
a população em geral se vê impossibilitada de trabalhar, mas os homens do governo todos têm trabalhos que os permitem consumir bens de alto valor.
D
enquanto a população encontra-se com fome e em situação terrível, os homens do governo ficam encastelados, confortavelmente protegidos, fingindo que tudo vai bem.
E
a distância da casa influencia no modo como as notícias vão parar no jornal, o que causa um descompasso entre os fatos e o modo como os jornalistas os noticiam.