Um dos maiores segredos da guerra — uma máquina surpreendente que aplica velocidades eletrônicas pela primeira vez a tarefas matemáticas até então muito difíceis e complicadas de resolver — foi anunciada esta noite pelo Departamento de Guerra", noticiou o jornal americano New York Times em 14 de setembro de 1946.
O artigo falava sobre o ENIAC (Electronic Numerical Integrator And Computer ou Computador e Integrador Numérico Eletrônico), o primeiro computador digital eletrônico programável de uso geral. Ele seria uma espécie de tataravó do dispositivo em que você está lendo esta reportagem. O artigo detalhava que "foi inventado e aperfeiçoado por dois jovens da Moore School of Electrical Engineering: Dr. John William Maulchy, de 38 anos, físico e meteorologista amador; e seu sócio J. Presper Eckert Jr., de 26 anos, um engenheiro de projetos.
O texto também dizia que "muitos outros na escola também ajudaram". O governo aprovou o projeto em 1943 e "exatamente 30 meses depois, [o computador] estava funcionando, fazendo com facilidade o que muitos homens treinados faziam a duras custas".
O que eles não mencionaram na extensa reportagem é que aqueles "muitos outros" que "forneciam ajuda" não eram apenas "homens treinados", mas sim seis matemáticas talentosas que, por sinal, fizeram muito além de apenas ajudar no projeto.
A façanha das matemáticas de programar o primeiro supercomputador moderno do mundo — partindo do zero — passou despercebida .
'Mulheres de propagandas de geladeira'
Justiça seja feita, os jornalistas não tinham como noticiar algo que sequer sabiam.
O campo da computação estava no começo. O que eles viram foi apenas uma máquina enorme e ninguém entendia de programação.
Além disso, ninguém falou a eles sobre as matemáticas.
Embora tenham participado da primeira apresentação pública do supercomputador, no dia 1º de fevereiro, elas foram incumbidas de servir o café durante o evento.
Nem sequer foram convidadas para a segunda apresentação, duas semanas depois, quando compareceram grandes personalidades da comunidade científica e tecnológica. Ou para o grande jantar de luxo com o diretor da Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos.
A história foi revelada décadas depois pela cientista da computação e historiadora Kathryn Kleiman, autora do livro Proving Ground.
Ela descobriu a existência das programadoras do ENIAC quando era aluna de Harvard na década de 1980 e se deparou com fotos do computador histórico.
"As mesmas mulheres apareceram repetidamente nas imagens, mas seus nomes não estavam nas legendas", disse Kleiman ao site HistoryExtra.
Obcecada em identificá-los, ela consultou Gwen Bell, co-fundadora e depois diretora do Computer History Museum.
"São só mulheres de propaganda de geladeira", respondeu ela, referindo-se às modelos que na década de 1950 apareciam em comerciais de eletrodomésticos.
Mas essa explicação não satisfez Kleiman.
Ela conseguiu descobrir os nomes das mulheres: Frances "Betty" Holberton, Kathleen "Kay" McNulty, Marlyn Wescoff, Ruth Lichterman, Frances "Fran" Bilas e Jean Jenningsz.
Ao fazer isso, resgatou suas histórias do ostracismo.
Uma história que começou nos campos de batalha.
Os exércitos tinham que levar em consideração distância, umidade, densidade do ar, temperatura e peso do projétil. No deserto, a diferença de solo exigia um novo conjunto de cálculos.
Esses cálculos indicavam com bastante precisão em que ângulo disparar a arma para atingir o alvo.
Em geral, era uma tarefa que levava de 30 a 40 horas —- e era preciso saber resolver equações de cálculo diferencial para isso.
Mas os soldados no campo de batalha não tinham todo esse tempo. E muitas vezes não tinham o conhecimento, então eles usavam tabelas de tiro: listas com muitas e muitas variações.
Para criar essas tabelas, os militares dos EUA recrutaram mais de 100 mulheres qualificadas, já que a maioria dos homens estava na linha de frente.
O nome desse tipo de profissão era "computador".
"O computador era uma pessoa antes de ser uma máquina", disse Kleiman.
Mas por não serem feitos por homens, esses empregos eram considerados "subprofissionais" ou "subcientíficos".
Enquanto os "computadores" faziam os cálculos difíceis, Maulchy, Eckert e uma equipe de homens estavam ocupados montando a máquina que haviam prometido entregar ao Exército, para reduzir o tempo do cálculo da trajetória balística de uma semana para poucos segundos.
As duas equipes — das mulheres "computadoras" e dos homens que estavam criando a máquina — trabalhavam no Moore School of Electrical Engineering da Universidade da Pensilvânia, na Filadélfia.
"Na verdade, havia uma grande placa dizendo 'Entrada Proibida' na porta da sala do ENIAC, e mulheres não podiam entrar."
Quando a guerra estava quase no fim, Maulchy e Eckert confirmaram que o hardware experimental —2,5 metros de altura, 25 metros de largura e pesando 30 toneladas — estava pronto.
"Ninguém tinha certeza de que realmente funcionaria", disse Kleiman.
“Mas, quando revisaram o contrato, perceberam que o que tinham que entregar ao Exército não era o ENIAC."
“A sua missão não era construir uma máquina, mas construir uma máquina que calculasse a trajetória da balística”, esclareceu o autor.
Foi então que escolheram as seis melhores "computadoras" e disseram a elas:
"Nós a construímos, mas vocês têm que programá-la. E gostaríamos de ver o programa pronto em breve."
Embora fossem matemáticas altamente treinadas, elas não tinham um plano de voo para executar a tarefa.
"Eles nos deram esses grandes diagramas de blocos. E deveríamos estudá-los e descobrir como programá-los.
Obviamente não tínhamos a menor ideia do que estávamos fazendo", recorda uma das matemáticas.
Elas tiveram que tatear no escuro em busca da solução.
Ainda não existia nenhuma das centenas de linguagens de programação que conhecemos hoje.
Você não podia nem "sentar na frente do ENIAC e escrever as instruções. Simplesmente não havia essa possibilidade", observou Kleiman.
"É por isso que acho tão fascinante o que elas fizeram."
(Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/articles/c2q9x9qx2geo. Acesso em: 20 de ago. 2023)
Para as “computadoras”, a maior dificuldade quanto à programação em ENIAC justifica-se pelo fato de haver: